Eu que me achava a desconstruidona do rolê...

É possível ter certeza de que avançamos na superação dos padrões opressores de corpo e gênero?

Terminei o segundo texto da série sobre os erros de gênero de pessoas trans ("Está na hora de desautomatizar as nossas percepções de gênero") e acredito que a metáfora seja mesmo bem apropriada. Tanto pensando que, a qualquer momento, podemos cometer um lapso e dizer uma frase que não faça sentido ou seja francamente ofensiva, quanto que jamais vamos nos livrar completamente da língua materna ao falar essa nova língua.

Por mais que nos esforcemos, a gramática que moldou nosso pensamento e nosso aparelho fonador (as partes do corpo que articulamos para produzir as palavras) jamais vai ser completamente esquecida. E o mesmo se dá com os padrões de gênero que martelam nas nossas cabeças desde quando nascemos. Viver é isso, uma luta permanente para não cedermos a esse condicionamento.

Pensemos, por exemplo, no debate sobre gordofobia. Uma das figuras com quem mais aprendo, nesse sentido, é a Jéssica Balbino (@jessicabalbino_ no Instagram). Nos seus posts e colunas, ela discute a hipocrisia de uma sociedade que se esmera cada vez mais em elogiar corpos gordos (quantos elogios ela não recebe em suas fotos "empoderadas"?) e, ao mesmo tempo, surta a cada aumento de peso acusado pela balança.

Como conciliar o elogio ao corpo gordo com o pânico ante qualquer oscilação para cima no próprio peso? Como aceitar que, em 2022, a frase "você emagreceu" segue sendo encarada como um elogio? Ganhei quase dez quilos só no ano passado, por fatores que têm a ver com confinamento, má alimentação, problemas pessoais e tratamento hormonal, e simplesmente sustei o tratamento hormonal por não estar mais conseguindo me reconhecer.

Estacionei logo abaixo dos 90 kgs e aí estou desde então, nesse processo de aceitar as mudanças pelas quais vai passando o meu corpo desde o começo da pandemia... e, bom, isso porque eu me imaginava toda desconstruidona, já suficientemente livre desse preconceito. Quem dera! A coisa está entranhada dentro de nós de maneira muito profunda. Consigo imaginar inúmeros paralelos em relação aos padrões dominantes de gênero, dos quais ainda hoje estamos tão reféns na comunidade trans.

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As redes sociais dão a impressão de que estamos rompendo paradigmas, mas é possível que isso seja uma bela ilusão apenas. Começamos a seguir influenciadôries que discutem rupturas com o padrão hegemônico e, então, nossas redes sociais agora estão repletas de corporalidades as mais diversas, mas, na prática, ainda morremos de medo de descer qualquer degrau que seja na régua que padroniza as nossas existências. É a "Pedagogia da Autonomia", de Paulo Freire, ela mais uma vez, que me vem à mente quando penso nisso (p.46):

"Os oprimidos que introjetam a 'sombra' dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que 'preenchessem' o 'vazio' deixado pela expulsão com outro 'conteúdo' — o de sua autonomia. A liberdade que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem."

O que me faz concluir que só seremos, de fato, livres, enquanto nos mantivermos nessa luta permanente por libertação. Arcando com as responsabilidades que ela nos traz, aliás.

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