Este médico manteve em segredo a cirurgia de afirmação de gênero que realizou há 40 anos

Por incrível que pareça, a antiga União Soviética testemunhou um momento pioneiro da história dos transgêneros.

Andrejs Strokins

Dr. Viktors Kalnbērzs

RIGA, Letônia — Dr. Viktors Kalnbērzs ainda se lembra daquele dia, no inverno de 1968, quando o telefone tocou em seu escritório e mudou a sua vida para sempre.

Do outro lado da linha, estava seu amigo Vladimir Demikhov, um cirurgião pioneiro em transplantes, que lhe falou sobre uma possível paciente chamada Inna.

"Apareceu uma mulher que quer mudar de sexo", Demikhov lhe disse, com linguagem e atitudes acerca da transição de gênero que eram comuns na época. "Ela quer virar um homem." Demikhov se perguntou se o Dr. Kalnbērzs gostaria de aceitar a paciente.

Ao realizar uma cirurgia sem precedentes que se tornou segredo de Estado por décadas, Dr. Kalnbērzs se arriscou a enfrentar a ira das autoridades soviéticas e de ser preterido pela comunidade médica.

Mais de 40 anos depois, o BuzzFeed News e o site russo Meduza encontraram Dr. Kalnbērzs, que já está com mais de 90 anos, em um subúrbio calmo de Riga, capital da Letônia, onde ele falou pela primeira vez com detalhes sobre a primeira cirurgia total de afirmação de gênero do feminino para o masculino.

O doutor Kalnbērzs era conhecido por realizar cirurgias criando próteses penianas após acidentes, ferimentos e queimaduras. Ele também operou muitos pacientes que nasceram com ambos os genitais externos, masculino e feminino.

Na época, Dr. Kalnbērzs achava que jamais entenderia por que alguém gostaria de mudar de sexo, e lembra de ter se perguntado se "a ira de Deus cairia sobre ele" por realizar a cirurgia. "Eu estava em conflito", afirmou, 40 anos após o fato. Ele se preocupou com o que a mãe da paciente pensaria. "Eu estava com medo de estar desafiando a natureza, desafiando Deus."

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"Eu sei que você vai tentar me convencer a não fazer isso, mas poupe o esforço."

Apesar disso, concordou em conhecer Inna no Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa de Traumatologia e Ortopedia de Riga, um prédio de tijolo de dois andares nos arredores de Riga, onde ele trabalhava. Hoje em dia, a Letônia é um Estado independente membro da União Europeia, mas, na época, era a República Socialista Soviética da Letônia e fazia parte da União Soviética. Dias depois, Dr. Kalnbērzs descreveu a pessoa que ele conheceu como uma "morena vivaz com feições caracteristicamente femininas". Inna tinha apenas 30 anos e trabalhava como diretora de um instituto de pesquisa e desenvolvimento de Moscou.

"Eu sei que você vai tentar me convencer a não fazer isso, mas poupe o esforço", Inna disse a ele. "Tenho certeza de que a natureza cometeu um erro e que você pode consertá-lo."

Dr. Kalnbērzs disse que perguntou a Inna sobre suas experiências sexuais. Inna achava sexo com homens repulsivo e já tinha tentado de tudo para superar esse sentimento, desde hipnose até terapia hormonal, mas nada funcionou. Ela apelou para a ajuda de médicos de Moscou, mas disse que eles acabaram "dando risada da situação". O cirurgião prometeu pensar a respeito e Inna voltou para Moscou.

Após o encontro inicial, Viktors Kalnbērzs começou a pesquisar, mas não havia muitas informações disponíveis. Tudo que ele conseguia encontrar era literatura científica a respeito de quatro cirurgias de transição de feminino para masculino. Mas nenhuma das operações foi completa — o órgão sexual antigo foi preservado, ainda funcional, ao lado do novo órgão sexual criado pelos cirurgiões. Os pacientes podiam engravidar e ainda menstruavam.

Acredita-se que a primeira pessoa que passou com sucesso pela cirurgia de mudança de sexo feminino para masculino, chamada hoje em dia de cirurgia de afirmação de gênero, foi Michael Dillon. Segundo relatos, a transição não foi completa: em uma publicação médica, uma carta de seu cirurgião descreveu o paciente como um "hermafrodita com uma genitália feminina intacta", e até Dillon, em suas memórias, referiu-se a ele mesmo como hermafrodita.

Depois de ler tudo a respeito, Dr. Kalnbērzs tomou uma decisão importante: se ele fosse realizar a cirurgia, precisaria fazê-la completa e até o fim.

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Andrejs Strokins

Dr. Viktors Kalnbērzs

Inna eventualmente voltou a Riga. Dr. Kalnbērzs disse que não poderia garantir o sucesso da cirurgia, mas permitiria que Inna visse como ele operava pacientes intersexuais e decidisse como proceder. Ele deu a Inna um uniforme branco de enfermeira e disse aos outros pacientes que a pessoa no uniforme era uma consultora que o auxiliaria com uma terapia hormonal. Após ver como o cirurgião construía um órgão sexual, Inna sentiu-se pronta para seguir em frente com os procedimentos.

Quando Inna deu entrada no hospital, Dr. Kalnbērzs reuniu um grupo de cirurgiões e psiquiatras para decidir o que fazer. A conversa foi pautada pelo que se pensava na época. Um deles disse que hipnose não funcionaria no caso de Inna, e que a única opção para que ela fosse feliz seria a cirurgia de mudança de sexo. Outro disse que, se Dr. Kalnbērzs não realizasse a cirurgia, Inna possivelmente tentaria cometer suicídio. Ninguém do grupo foi contra. O ministro da saúde da Letônia, de quem o médico era amigo, deu permissão verbal para que a operação fosse feita.

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"Eu nunca superaria a perda da minha filha."

A essa altura, Dr. Kalnbērzs pediu para ser apresentado à mãe de Inna. Inna concordou e organizou o encontro quando o médico estava em visita a Moscou para passar um período na Academia de Ciências. Dr. Kalnbērzs lembra que a mãe lhe disse que Inna já havia tentado cometer suicídio três vezes. Em uma das ocasiões, ela conseguiu ligar para uma ambulância a tempo de salvar a filha, mas teve medo de não ter essa sorte se houvesse uma próxima vez. "Eu consigo aceitar que minha filha vire meu filho", ela disse. "Mas nunca superaria sua perda."

Dr. Kalnbērzs também consultou padres. Um deles lhe disse que "ninguém deve interferir na palavra de Deus", enquanto outro argumentou que "se a natureza cometeu um erro e você pode consertá-lo, está ajudando o Senhor".

Dr. Kalnbērzs lembra de um incidente bizarro em que um de seus colegas tentou fazer Inna mudar de ideia fazendo-a se apaixonar por ele. Mas, de acordo com Dr. Kalnbērzs, "os esforços dele foram completamente em vão."

No entanto, evidenciando a linguagem e os posicionamentos — considerados antiquados e ofensivos no Ocidente — que persistem até hoje desde os tempos soviéticos, Dr. Kalnbērzs afirmou que o episódio envolvendo Inna e seu colega acabou se tornando um argumento importante para que ele desse seguimento à cirurgia, pois, segundo Dr. Kalnbērzs, "se uma mulher conseguiu não se apaixonar por ele [o colega], ela não era mulher e, portanto, havia uma justificativa para transformá-la em um homem."

Apesar disso tudo, em dado momento, Dr. Kalnbērzs decidiu que, no fim das contas, não faria a operação, pedindo para que Inna voltasse para Moscou. Em resposta, Inna lhe escreveu uma carta em 1969:

Desde os primeiros anos da minha infância, eu vivia com a convicção de que era um menininho e que, com o tempo, esse menininho se tornaria um homem. Essa convicção existia antes mesmo de eu saber, e isso se refletia em cada pequena coisa que eu fazia. Com o passar dos anos, isso cresceu e ficou tão forte que as sementes da minha masculinidade acabaram predeterminando meu futuro inteiro. Apesar do aparecimento de características sexuais femininas, inclinações, hábitos, afetos e aspirações puramente masculinos se desenvolveram dentro de mim, e isso foi me isolando das outras pessoas gradualmente, me privando da capacidade de ter amigos, de ter pessoas próximas a mim, de ter uma família e todas as outras coisas que todo mundo simplesmente acha naturais.

Quando eu tinha 12 anos, me apaixonei pela primeira vez, e o meu afeto se dirigia não para um "ele", e sim "ela". Esse sentimento, que eu nutri até os 18 anos, foi o primeiro a me revelar, com uma clareza cruel, que minha situação não tinha solução. Basicamente, esse foi o começo de uma séria reflexão a respeito dos problemas terríveis que eu tinha, e que, de alguma forma, nunca haviam me incomodado até então e ainda não tinham me forçado a pensar sobre mim mesma.

O tempo passou e, no começo, um lado meu começou instintivamente a buscar uma saída, mas ela nunca havia existido e nem poderia existir. Eu me tornei introspectiva, mas tentei mesmo assim. Tentei desesperadamente mudar quem eu sou, superar a mim mesma, suprimir minha atração por mulheres. Mas todas essas tentativas se provaram inúteis. Eu nunca vou me sentir atraída por homens, mesmo que, plenamente consciente do desespero da minha situação, tenha tentado com todas as minhas forças suprimir quaisquer manifestações de masculinidade dentro de mim. A única coisa que fiz bem ao longo dos anos foi a representação teatral de feminilidade. Mas até nisso eu não fui totalmente bem sucedida. A forma como eu penso, minha psique e, portanto, todos os meus comportamentos, todas as mínimas particularidades do meu caráter, as pequenas nuances da minha personalidade e todas as coisas com as quais me importo, ou seja, todo o meu eu, é completamente moldado pela minha masculinidade, e é impossível descrever como é difícil esconder isso o tempo inteiro. Eu vivo como um espião em solo inimigo, mas minha vida é ainda pior: o espião pelo menos sabe que, depois de um tempo, alguém virá substituí-lo e ele poderá ser ele mesmo novamente; enquanto eu não posso nutrir a esperança de que um dia alguém aliviará minha necessidade de viver para sempre atrás de uma máscara, de precisar interpretar um papel que eu odeio, de vestir roupas que me causam aversão, de não ter nem amigos nem família, de ter medo de ser eu até mesmo perto das pessoas mais próximas a mim.

Para completar, a atração forte e constante que eu sinto por mulheres complica muito minha vida. É uma paixão quase sem saída, cujo acúmulo incessante e persistente torna minha existência insuportavelmente torturante. Se eu só puder ter intimidades com um homem, prefiro me enforcar.

Tenho 30 anos. O que eu carrego dentro de mim é a fundação, a base de toda a minha vida. Mesmo se acontecesse algum tipo de milagre que pudesse fazer com que eu me sentisse atraída por homens, seria impossível que eu, de repente, na quarta década da minha vida, refizesse toda a minha existência e aprendesse a me interessar por passatempos puramente femininos, a ter hábitos femininos a respeito dos quais eu tenho apenas uma vaga noção. Além de tudo isso, a minha atração por mulheres é forte e antiga, e eu gostaria que isso finalmente me proporcionasse a oportunidade de ser feliz.

Considerando tudo que escrevi, e sabendo que você está realizando um experimento semelhante, estou implorando para que você me ajude a solucionar esse problema. Se uma reconstrução total é impossível, peço que você faça apenas uma cirurgia plástica e permita que eu mude de sexo legalmente. Por favor, me dê a oportunidade de viver pelo menos uma parte da minha vida em harmonia com as minhas necessidades mais íntimas, sem me sentir excluída como um pária, e sim como um ser humano entre homens.

A carta de Inna internaliza posicionamentos que as pessoas considerariam inaceitáveis hoje em dia, por vincular a atração por mulheres (orientação sexual) com o fato de ser trans (identidade de gênero) — em mais uma indicação de como a homossexualidade era vista na União Soviética nos anos 70.

Mas, depois de lê-la, Dr. Kalnbērzs finalmente concordou em dar seguimento à cirurgia, muitos meses após receber a primeira ligação de seu amigo cirurgião. Inna, que voltou a Riga, pediu a Dr. Kalnbērzs para manter a confidencialidade do procedimento por medo de ser assediada pelo governo e pela polícia secreta. Ela foi colocada em uma ala separada dos outros internados, mas as enfermeiras fofocavam e muitos dos pacientes e seus familiares queriam vê-la. Alguns abriam a porta do quarto de Inna e depois se desculpavam, fingindo que tinham se enganado. Inna ficava deitada na cama do hospital com um cobertor sobre a cabeça.

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Andrejs Strokins

Dr. Viktors Kalnbērzs

Dr. Kalnbērzs operou Inna nove vezes. "Eu fiz assim para que fosse possível desfazer tudo caso ela se sentisse insatisfeita e quisesse continuar sendo uma mulher", ele explicou. Em dado momento, ele decidiu chamar uma ginecologista para auxiliá-lo. Quando ela viu que não havia nada de "errado" com Inna, recusou-se a participar da cirurgia, chamando-a de criminosa e afirmando que acabaria atrás das grades caso resolvesse ajudar. Então, o médico acabou fazendo essa cirurgia sozinho.

O processo inteiro demorou um ano e meio. A primeira operação foi realizada em 17 de setembro de 1970, e a última foi concluída em 5 de abril de 1972. Eles precisavam fazer intervalos de dois a três meses para que Inna se recuperasse. Durante esses meses, Inna voltava para Moscou e continuava trabalhando normalmente.

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"Innokenty vestia calças e criou o hábito de visitar a garagem, onde ficou amigo dos motoristas do hospital. Ele gostava de xingar, fumar e ficar bêbado com os outros homens."

"Eu falsifiquei os documentos de sua licença médica para que ninguém descobrisse a respeito das operações. Escrevi que ela estava realizando cirurgias plásticas para corrigir alguns defeitos, mas nada sobre mudança de sexo", disse Dr. Kalnbērzs.

Após a última cirurgia, eles começaram a chamar Inna de Innokenty — o nome pegou no hospital, mas o paciente escolheu outro nome depois da alta. Até onde sabemos, Inna usava pronomes femininos antes da cirurgia, mas posteriormente passou a usar pronomes masculinos.

"Ele queria ressaltar sua aparência masculina, se destacar com seu comportamento masculino; depois da terapia hormonal, sua voz ficou mais grave", Dr. Kalnbērzs lembrou. "Innokenty vestia calças e criou o hábito de visitar a garagem, onde ficou amigo dos motoristas do hospital. Ele gostava de xingar, fumar e ficar bêbado com os outros homens."

Dr. Kalnbērzs ajudou Innokenty a mudar seus documentos, algo que precisava da aprovação do comitê da RSS da Letônia, que era constituído por representantes de escritórios regionais dos ministros da saúde e de interior. O comitê perguntou como Innokenty se sentia. Ele disse que estava muito feliz, Dr. Kalnbērzs lembrou. Innokenty recebeu um novo passaporte, um certificado militar e outros documentos.

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"Sinto que tenho a força para viver tudo que eu perdi na minha vida passada."

Dr. Kalnbērzs disse que preferia não saber muito sobre a nova vida de seu paciente por medo de expô-lo acidentalmente. Então, ele deu suas informações a Innokenty e pediu que ele mantivesse contato.

Ao ir embora, Innokenty deu um cartão ao médico, datado de 14 de agosto de 1972: "Finalmente, depois de tantos anos, a dualidade que me oprimia se foi. Na minha nova forma, posso existir entre as pessoas como meu verdadeiro eu.

"Sinto que tenho a força para viver tudo que eu perdi na minha vida passada", ele escreveu.

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Andrejs Strokins

Dr. Viktors Kalnbērzs

Dr. Kalnbērzs ficou preocupado com o julgamento dos seus colegas por ele ter realizado as operações em Innokenty e de entrar em conflito com o Ministério da Saúde soviético — e estava certo.

Durante a época soviética, pessoas LGTBQ eram consideradas criminosas, e quaisquer dúvidas sobre a sexualidade eram vistas como devassidão - o que não é muito diferente da Rússia de hoje em dia.

Para pessoas transgênero, a abordagem era aleatória. Alguns pacientes conseguiam mudar o gênero nos documentos; outros eram diagnosticados com esquizofrenia e tratados com drogas psicotrópicas e internados em instituições, alguns por toda a vida.

Andrei Snezhnevsky, um dos fundadores da psiquiatria repressiva soviética, frequentemente empregada contra dissidentes, chamou a transexualidade de "perversão" em seu livro de 1983 e diagnosticava pessoas transgênero como esquizofrênicas.

Outros psiquiatras, como Aron Belkin, acreditavam na cirurgia de mudança de sexo; ele se tornou um dos primeiros da URSS a emitir permissões para essas operações de forma regular. O médico acreditava que "mudar o sexo de uma pessoa era uma atitude elevada e humana, que ajudava um indivíduo não só a se libertar de uma situação muitas vezes torturante que provocava atitudes suicidas, mas também a encontrar seu verdadeiro lugar na sociedade", escreveu em seu livro "The Third Sex"(O Terceiro Sexo em tradução livre).

Quando o ministro da saúde soviético, Boris Petrovsky, soube do feito de Dr. Kalnbērzs com Innokenty, alguns dias antes de o paciente receber alta do hospital, exigiu que o médico viajasse para Moscou de imediato a fim de se explicar. Dr. Kalnbērzs fez a viagem e encontrou um burocrata implacável, que disse já ter entrado em contato com o Ministério da Justiça a seu respeito.

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"Você sabe que seus atos foram criminosos?"

Em suas memórias, Dr. Kalnbērzs lembra que houve uma longa conversa entre os dois homens — que expõe a visão que a União Soviética tinha de si mesma, como um lugar longe do Ocidente.

"Você sabe que seus atos foram criminosos?" Dr. Kalnbērzs se lembra de Petrovsky lhe ter perguntado. Ele recorda o ministro dizendo que "esse tipo de cirurgia vai de encontro ao regime soviético" e que ele deveria estar "atrás das grades".

O médico disse ao ministro que queria apenas ajudar um paciente que, ele temia, estava "à beira de um suicídio". O ministro respondeu que o paciente deveria ter morrido, chamando as operações de "pervertidas".

"Transexualidade não é perversão", Dr. Kalnbērzs disse ter falado para Petrovsky. "É uma doença."

"Não existe essa doença", o ministro respondeu. "É pura perversão e você a está encorajando. Você sabe o que está acontecendo em sociedades capitalistas? No Japão, eles estão fazendo propaganda de sexo livre. Quer que isso aconteça aqui?"

Depois ele começou a esbravejar que a homossexualidade era ilegal na União Soviética e acusou Dr. Kalnbērzs de tentar legalizá-la.

"Esse tipo de operação não faz parte da nossa sociedade", continuou o ministro. "Eles apoiariam você no mundo capitalista. Nossa sociedade tem o dever de proteger seus cidadãos de operações perigosas. Isso é experimento em humanos!"

No fim, o ministro não mandou Dr. Kalnbērzs para a prisão, mas entregou uma "advertência severa" dizendo que ele havia realizado uma operação perigosa que ia de encontro à ideologia soviética.

Dr. Kalnbērzs foi proibido de fazer cirurgias semelhantes a partir de então e de falar sobre elas em palestras e artigos escritos. Uma nota sobre o banimento foi enviada para cada escritório regional do Ministério da Saúde por toda a União Soviética. Durante os 20 anos seguintes, o feito de Dr. Kalnbērzs permaneceu confidencial.

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Andrejs Strokins

Dr. Viktors Kalnbērzs

Pessoas trans ainda enfrentam grandes problemas na Rússia atual, onde o aumento de atitudes conservadoras, principalmente em relação a gênero e sexualidade, está sendo alimentado pelo Kremlin e pela Igreja Ortodoxa da Rússia.

Pessoas trans enfrentam violência, instabilidade no trabalho e dificuldade para conseguir documentos. No relatório Rainbow Europe 2018, a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans e Intersexuais colocou a Rússia como o 45º de 49 países no ranking de direitos humanos LGBTQ. O Centro de Pesquisa Social Independente da Rússia disse em outubro passado que crimes de ódio contra pessoas LGBTQ haviam dobrado em cinco anos com a criação de uma lei banindo "propaganda gay". Em 2015, a Rússia listou pessoas trans entre as que não poderiam mais requerer licença para dirigir.

Embora um decreto emitido em fevereiro pelo Ministério da Saúde tenha simplificado e acelerado o processo para a mudança de gênero no passaporte, muitos ainda enfrentam barreiras para conseguir o tipo de tratamento médico de que precisam.

Poucos profissionais realizam cirurgia de afirmação de gênero de feminino para masculino, e aqueles que o fazem exigem que o paciente receba permissão especial emitida por comitês médicos, que estão sob ataque constante de ativistas conservadores. O comitê do país que oferecia mais chance de conceder tal permissão, na Universidade de Medicina Pediátrica do Estado de São Petersburgo, foi dissolvido em 2015 depois que o movimento ativista ortodoxo russo Narodny Sobor fez uma campanha bem sucedida para que o seu diretor, o psiquiatra e sexólogo Dmitry Isaev, fosse demitido. Dezenas de pessoas de todo o mundo se consultavam com ele — tanto por sua reputação quanto por seus preços. Isaev cobrava 10 mil rublos (US$ 160) por um exame, bem abaixo dos valores de 30 mil a 70 mil rublos (US$ 475 a US$ 1.100) que os outros comitês pediam. Atualmente, Isaev realiza consultas privadas. Em Moscou e outras cidades, esse tipo de exame é realizado em clínicas neuropsicológicas, mas poucas pessoas estão dispostas a recorrer a elas por medo de serem internadas à força ou de serem diagnosticadas com esquizofrenia — um medo dos tempos soviéticos.

Para conceder a permissão para a cirurgia, um médico deve diagnosticar o paciente com "transexualismo". A última versão da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (CID-11), divulgada em 18 de junho, não lista mais o transtorno de identidade de gênero entre os "transtornos mentais e comportamentais". As mudanças na CID-11 são simbolicamente muito importantes, mas a retirada da transexualidade da lista de transtornos significa que novas regulamentações precisarão ser escritas para a prescrição do tratamento hormonal e cirúrgico.

A Rússia terá que usar a nova CDI, mas o processo de incorporação dela à prática médica já existente é longo. A versão anterior, CID-10, lançada em 1990, só começou a ser implementada na Rússia sete anos mais tarde.

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Apesar da advertência do Ministério da Saúde soviético, Dr. Kalnbērzs seguiu em frente e teve uma carreira brilhante na medicina.

Ele finalmente conseguiu registrar um relatório de sua inovação — "um método para tratamento cirúrgico de hermafroditismo" — no comitê soviético de invenções e descobertas em 1975, no qual detalhou uma operação completa de mudança de sexo. O relatório só ficava disponível em arquivos secretos, mas foi publicado na íntegra no início dos anos 90. E, apesar do banimento do Ministério da Saúde, ele realizou diversas cirurgias de mudança de sexo que coincidiram com o movimento de reformas da Perestroika no fim dos anos 80, em uma época de liberdade crescente.

Nos anos 80, Dr. Kalnbērzs passou vários anos na linha frente no Afeganistão, onde realizava cirurgias em soldados soviéticos feridos. Ele tratou a impotência de um dos líderes da KGB. Nos anos 2000, depois de se aposentar, Dr. Kalnbērzs recebeu cartas de agradecimento do presidente Vladimir Putin.

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"Até o fim da minha vida, vou considerar você o meu deus."

Quanto a Innokenty, ele entrou em contato com Dr. Kalnbērzs esporadicamente após as cirurgias. Sete meses depois da última operação, enviou uma carta para ele dizendo: "Estou apenas vivendo minha vida e trabalhando como qualquer outra pessoa. Ao mesmo tempo, não é tão simples assim. Outras pessoas vivem sob regras que pregam que a vida é uma corrida atrás do sucesso. Para mim, essa corrida não existe mais. Eu olho para a vida e valorizo as coisas que provavelmente apenas pessoas mais velhas valorizam: a própria vida. A batalha interna entre os dois eus que brigavam dentro de mim me afastava do mundo. Até o fim da minha vida, vou considerar você o meu deus."

Innokenty disse que havia pedido demissão do instituto de pesquisa e desenvolvimento e decidido dar um fim à sua carreira na engenharia, pois achava que a KGB — que todos acreditavam saber de tudo — estaria interessada em seu passado. Ele dizia aos médicos que suas cicatrizes eram de uma briga. "Um cirurgião nunca descobriu que seu pênis havia sido feito artificialmente. Naquela época, jamais ocorreria a alguém pensar que operações de mudança de sexo estavam sendo realizadas no nosso país", disse Dr. Kalnbērzs.

Innokenty viveu em Riga por um tempo antes de ir para a Sibéria, onde ninguém conhecia seu passado.

Depois de se mudar para lá, continuou ligando para o médico em intervalos de poucos anos. Ele o chama de "professor". Cada ligação era de um número diferente. Mesmo décadas após a sua operação, Innokenty continuava com medo da KGB e de outras organizações da polícia secreta.

Dr. Kalnbērzs disse que ele se casou no fim dos anos 70. O médico lembra que seu ex-paciente falou: "a mulher já esteve com outros homens antes de mim, homens que eram muito mais masculinos que eu — não sou páreo para eles —, mas disse que nunca foi tão feliz com alguém quanto é comigo. Minhas inabaláveis força e ternura estão entre as razões mais importantes, se não as mais importantes", disse. Mas a mulher logo morreu de câncer. E Innokenty casou-se novamente.

Dr. Kalnbērzs não estava particularmente interessado em saber de tudo isso. Achava que tinha feito seu trabalho e o paciente deveria viver sua vida. Nos anos 2000, Innokenty se ofereceu para encontrá-lo diversas vezes para que pudessem conversar sobre suas vidas. Dr. Kalnbērzs inventava desculpas para evitar o encontro. Ele não queria falar sobre o passado, mas, principalmente, tinha medo de encarar seu antigo eu. "Eu não vou enxergar aquele paciente, e sim um homem idoso", ele disse. "E isso me forçará a olhar para mim mesmo sob uma nova perspectiva. As pessoas nem sempre querem ser vistas em estado deplorável."

De acordo com Dr. Kalnbērzs, a última vez que Innokenty ligou foi no inverno de 2017. Ele queria saber se o médico poderia realizar mais uma cirurgia nele — uma profilática (o paciente estava com quase 80 anos). O cirurgião respondeu que havia se aposentado muito tempo atrás e não podia mais operar por causa de sua coluna. Além disso, o hospital onde Innokenty fora operado pela primeira vez, 40 anos antes, já não existia mais. Na despedida, o paciente desejou saúde a Dr. Kalnbērzs. O BuzzFeed News e o Meduza tentaram encontrar Innokenty, mas não conseguiram.

Dr. Kalnbērzs, agora com 90 anos, vive há 20 em uma casa construída com o dinheiro que recebeu por cirurgias realizadas na Europa e nos Estados Unidos. Está situada em um subúrbio calmo de Riga que os jornais locais chamam de "a vila dos milionários". A casa dele fica ao lado de uma floresta de pinheiros e de um rio. No primeiro andar, o médico construiu um museu dedicado ao seu trabalho. A maior parte é composta por fotografias nas quais o médico aparece ao lado de pessoas famosas: o comandante militar Semyon Budyonny, o ex-primeiro ministro soviético Mikhail Gorbachev, a cantora Laima Vaikule e outros. Ao lado dessas fotos, retratos de Lenin, Stalin e Putin. Em uma prateleira próxima, há um pênis rosa de cerâmica. ●

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A tradução deste post (versão original em inglês) foi editada por Victor Nascimento.

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