O que fazer quando a Justiça não pune a LGBTfobia na TV?

Ouvimos dois dos maiores especialistas em direitos da comunidade LGBTQIA+

Se você assiste televisão aberta, talvez saiba quem é Sikêra Júnior.

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Ele comanda um programa policial na RedeTV! e, volta e meia, dá declarações consideradas de cunho homofóbico.

Entre o que ele considera "piada" estão expressões como "queima ou não queima?". Ou seja: é um representante daquelas pessoas que não viram que o tempo passou e insistem em tratar opressão como "brincadeira".

A gente não gosta dele. É fato.

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Essa é a hora em que você prepara o estômago para ler o que ele disse.

Para o apresentador, homossexuais são "lixo", "bosta", "raça desgraçada". Ele ainda afirmou que "os homossexuais estão arruinando a família brasileira.

Belo exemplo de cidadão de bem em rede nacional, hein?

Para a Justiça, Sikêra não teve o intuito de ofender Viviany. Pode acreditar.

Segundo o desembargador Rodolfo Pelizzari, relator do processo no TJ, "a crítica foi dirigida à toda a comunidade LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais], de forma genérica. A conduta do apresentador não é ilícita, sendo uma mera crítica por entender que sua religião havia sido ofendida por homossexuais, a quem entende serem avessos a Jesus".

Advogada de Viviany, Cristiane de Novais foi direta na resposta: "Ela não se enquadra nos princípios da dignidade da pessoa humana?".

Cabe recurso.

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Decidimos ouvir especialistas sobre o assunto. Paulo Iotti, que participou do processo que criminalizou a LGBTfobia no STF, ficou em choque com a decisão.

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"A decisão é lamentável. Reconhece que ele chamou pessoas Trans de “raça desgracada” mas fala como se isso fosse “liberdade de expressão”. A meu ver, é claro discurso de ódio, e homotransfobia foi reconhecida como racismo pelo STF, logo foi uma fala de racismo transfóbico que configura crime e dano moral coletivo. E foi falada no contexto de atuação da Viviany, logo, foi uma ofensa a ela como pessoa também", afirma.

O advogado entende que decisões como essa dificultam a aplicação da lei: "Isso prova algo que sempre falo: com a homotransfobia reconhecida como racismo, teremos as mesmas dificuldades do Movimento Negro de tirar a lei do papel. 'Raça desgracada' não ser considerada fala racista é o cúmulo do absurdo. Mas cabem recursos ainda e tenho boa expectativa que se reverta isso no STJ ou pelo menos no STF".

Para Renan Quinalha, a decisão é um misto de conservadorismo e falta de compreensão da diversidade por parte da Justiça.

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"É uma decisão que tem uma aparência técnica e se fundamenta na liberdade de opinião e expressão, mas que no fundo reproduz uma visão bastante complicada da liberdade de expressão. Ela entende que não houve abuso ou um uso indevido dessa liberdade na crítica que foi feita, examina um casal de mulheres acusado de um assassinato e de repente mostra da Viviany Belenoni, mesmo sem falar o nome dela, usando termos inadequados como 'opção sexual'", afirma o professor de Direito e especialista em história do movimento LGBT no Brasil.

Para Renan, há falta de entendimento por parte da Justiça. "Se nota que há uma falta de compreensão associada a um preconceito por parte desse desembargador na maneira como avaliou o caso. Ele entendeu que não houve intenção de caluniar ou difamar Viviany porque ela queria gerar um debate e seria, portanto, suscetível à crítica. Mas não é assim. Tem limite. A exposição foi seguida de um discurso de ofensa, de chamar de "raça desgraçada". Ele reverteu uma decisão que já havia sido tomada a favor dela. Isso mostra um misto de conservadorismo moral e descompreensão da diversidade."

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O que fazer, portanto, quando a Justição não reconhece a LGBTfobia e ainda a autoriza em rede nacional de TV?

Paulo Iotti afirma que desistir não é uma opção. "Em primeiro lugar, recorrer dessas decisões, para tentar reformá-las e fazer o judiciário reconhecer que foi discurso de ódio e deve ser punido como tal. Certamente Viviany recorrerá e farei petição pró-entidades LGBTI+ no processo para isso. Temos que continuar processando, pra tentar gerar decisões favoráveis, como a que consegui junto com Márcia Rocha e Ana Carolina Borges condenando 'Veja', Jovem Pan e Reinaldo Azevedo em R$ 100 mil por dano moral transfóbico contra a Laerte Coutinho. Neste domingo (16) entregaremos a indenização ao grupo Mães pela Diversidade", conta.

E se ainda assim não der certo? "Em caso de derrotas, temos que lutar pela capacitação e sensibilização do judiciário, com cursos de direitos humanos LGBTI+. Medidas de curto, médio e longo prazo. Decisões do STF e mesmo leis não são pontos finais da luta, são novos inícios, nos dão novas bases pra dialogarmos com CNJ, Presidências de Tribunais, Secretarias de Justiça. São ações que costumo citar em palestras que não entendo porque não são feitas, mas que farei quando tiver forças, já que a exaustão me consome. Espero que outres também o façam. Não entendo porque não fizeram até agora."

Para Renan, é preciso capacitar melhor o judiciário: "Esse é o grande desafio. Precisamos educar melhor o judiciário brasileiro pra diversidade, ele é o reflexo da sociedade. Os concursos públicos são fracos desse ponto de vista, são uma decoreba de leis, sem conhecimento profundo da diversidade e direitos humanos. Precisa haver uma melhor seleção e recrutamento para deixar as instituições mais diversas. No treinamento todos deveriam passar por esses conteúdos. É algo que esse desembargador não teve".

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