Está na hora de desautomatizar as nossas percepções de gênero

Seria mais fácil crer que só pessoas odiosas erram o gênero de pessoas trans, mas a verdade está longe disso.

BuzzShe

Estava morrendo de medo da recepção que o meu texto da semana passada teria ("O que significa errarmos o gênero de pessoas trans?"), mas até que foi positiva a repercussão, com muita gente trans e não trans comentando que o que eu estava dizendo fazia realmente sentido. Era o começo de uma série de textos, como afirmei, nem sei quantos direito, vamos ter que descobrir juntes onde isso vai dar.

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Bom, um dos comentários feitos mencionava especificamente a Eslováquia, por ela ter errado o gênero de Linn da Quebrada reiteradas vezes e, não bastasse isso, ainda pediu de maneira abusiva para que o erro de seu namorado fosse relevado (o momento em que tapou a boca de Lina, lembram?). Mas observem: talvez a Chechênia seja, de fato, uma pessoa escrota e com pouca disposição para modificar a sua percepção sobre a Lina (e eu discordo que seja esse o caso), mas lá no "BBB" praticamente todas as pessoas cometeram erros similares.

Tanto gentes que gostam da Lina, como é o caso da Jéssi, do Lucas e do Abravanel, quanto gentes que não são tão próximas erraram o gênero dela. E, se o erro está sendo tão recorrente e vindo de grupos tão heterogêneos, acho que é importante refletirmos sobre os significados disso. Não pode ser só má fé, vontade de machucar, de desestabilizar a nossa sereia. O fenômeno é mais complexo do que isso. Pois bem, mas, como também foi dito em outro comentário, falar que boa parte dos erros se dá por termos internalizado um padrão hegemônico de corpo e gênero não quer dizer que devemos simplesmente aceitar e pronto, ou que não devemos criticar/se irritar quando erram.

Ter consciência de o quanto esses padrões automatizam a leitura que fazemos umes des outras implica, em primeiro lugar, agirmos sobre esse fato e fazermos um esforço para romper com esse condicionamento da nossa percepção. Isso não é algo que apenas pessoas cis tenham que fazer, no entanto: um dos meus pontos principais é justamente que pessoas trans estão também sujeitas a cometer esse tipo de erro.

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Por sermos alvo desse condicionamento, é esperado que desenvolvamos estratégias para driblá-lo melhor, mas isso não é garantia de que não vamos reproduzi-lo em alguns contextos. É bastante comum, inclusive, que venha de pessoas trans a resistência a reconhecer o gênero de outras pessoas trans, seja por estas estarem no começo da transição, seja por não conseguirem/quererem se aproximar dos padrões dominantes de masculino e feminino.

Querem um exemplo? Falei algumas semanas atrás sobre o quanto o beijo da Lina e da Maria chocou o público conservador ("O beijo da travesti na televisão põe a normatividade em xeque"), só não mencionei que dentro da própria comunidade trans muita gente demonstrou irritação e incômodo com o mesmo fato. Lembro de uma travesti dizer que, ao beijar uma mulher cis, a Lina alimentava a cultura que nos trata como homens, concluindo dessa maneira o post: "Tatua ELA na cara, insiste em ser chamada de ela e fica beijando mulher? Me julguem, mas eu acho um despropósito".

E quem dera fosse ela a única a pensar assim. Os comentários estavam bem divididos entre apoiar essa perspectiva e criticar o seu visível reacionarismo. Entre as que apoiaram, muitas travestis se mostravam apreensivas, pois acreditavam que a sociedade usaria esses beijos para tentar nos impedir de usar o banheiro feminino. Na prática, é como se defendessem que banheiros públicos segregados por gênero podem sim ser frequentados por pessoas trans, desde que sejam heterossexuais. Numa sociedade ainda tão marcadamente heteronormativa como a nossa, a orientação sexual acaba se tornando um componente definidor da identidade de gênero.

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E, bom, falei sobre o componente "orientação sexual" na formação do imaginário sobre o que é "ser mulher", mas poderia pensar em tantos outros atributos. Quantas vezes não me peguei observando atentamente a performance de gênero de uma pessoa trans para decidir, na minha cabeça, se fazia sentido a reivindicação de gênero que ela fazia? Quantas vezes, aliás, não duvidei de uma pessoa que se dizia cis, ou mesmo hétero, por acreditar que ela dava pistas de que seria mais feliz no vale? Queria ser uma figura toda desconstruída, capaz de lidar de forma natural com múltiplas manifestações de masculinidade, feminilidade e mesmo não-binariedade, mas, em boa parte dos casos, o máximo que consigo é guardar pra mim esses momentos em que sou invadida pelo meu próprio reacionarismo.

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Se quero me livrar desses condicionamentos, a primeiro coisa é não tentar fingir que eles já estão completamente superados. Vou continuar agindo sobre eles, esgarçando-os até chegar o dia em que eles não mais pesem na minha percepção da realidade. No entanto, e esse é o ponto a que eu queria chegar desde o começo, não basta essa transformação ser individual: só vamos, de fato, superar esse condicionamento, quando ele for superado coletivamente e, para isso, é preciso convivermos em espaços cada vez mais plurais, diversos.

Sempre lembro de uma frase muito curiosa que um amigo cis me disse no começo da minha transição: "Amara, já consigo te tratar 100% do tempo no feminino, mas o problema é que estou errando o gênero da minha namorada". Parece absurdo, mas não é. E tem a ver diretamente com essa discussão. Quando você começa a tensionar os limites da sua percepção de gênero (se forçando a reconhecer que, por exemplo, determinado padrão de voz ou corpo também podem ser entendidos como femininos), isso vai afetar não apenas a maneira como você vê pessoas trans, mas como você vê todas as pessoas.

Essa instabilidade durou um tempo e depois passou, mas aqui e ali sempre aconteciam lapsos. Não era raro que eu própria errasse o meu gênero ou o dessas pessoas com quem eu convivia. Quando bebemos, quando estamos sob pressão, quando não estamos muito atentes, é comum que nossa capacidade de concentração caia e aí os processos automatizados tomam conta. Acredito que seja como falar um idioma estrangeiro: quando você não tem convívio cotidiano com aquela língua, o grau de atenção que é preciso ter para não errar é enorme, mas quanto mais você está imerse nela, mais espontânea a fala vai saindo.

Agora vamos deixar a continuação desse papo para a semana que vem, porque vocês já viram que, se deixar, eu não paro.

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