Uma crítica machista de "As Panteras: Detonando" publicada há 20 anos mostra a importância de problematizar esses discursos

Um texto comum em 2003 é inaceitável hoje em dia.

Ainda tem gente que acha que problematizar um discurso que discrimina ou inferioriza pessoas e grupos é bobagem ou exagero, mas ao olharmos em retrospecto vemos que o incansável combate a esse tipo de violência trouxe mudanças substanciais na maneira como enxergamos e retratamos o mundo a nossa volta. 

E temos aqui um exemplo prático: Há 20 anos a Folha de S.Paulo publicou uma crítica do filme "As Panteras: Detonando", que na época foi apenas um texto comum, rotineiro, sem nenhum grande ponto que chamasse atenção. Mas lido agora, conseguimos ver o quanto o conteúdo é misógino e machista. 

Contextualizando: "As Panteras: Detonando" estreou no Brasil em julho de 2003. O filme, baseado na famosa série dos anos 70, é uma continuação do longa lançado três anos antes e que foi uma das primeiras superproduções de ação protagonizada por mulheres a fazer muito sucesso. 

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Drew Barrymore (que também é produtora do filme), Cameron Diaz e Lucy Liu interpretam três espiãs que descem a porrada nos vilões. Embora o conceito de "girl power" não fosse novidade, um filme desse gênero liderado por mulheres tinha poucas chances de ser levado a sério, e por isso debocha da própria necessidade de ter de incluir humor e sensualidade para ser visto. Deu certo e caiu no gosto do público. Já no gosto da crítica...

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Boa parte dos críticos, na época habituados a ver filmes de ação com Bruce Willis e até Tom Cruise - que já havia feito dois volumes da franquia "Missão Impossível" -, encarou "As Panteras" como piada. No caso do texto da Folha, além de descredibilizar o longa, o autor fala das atrizes de maneira bastante pejorativa. 

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O texto está até hoje disponível online.

O crítico aponta inconsistências no roteiro, comparando ao filme a "Austin Powers", mas pontuando que "'As Panteras' tem ação e closes nas bundas do trio central".

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Ao citar o trio, ele determina uma característica para cada atriz: "Cameron Diaz, Drew Barrymore e Lucy Liu, a gostosa, a gordinha e a exótica". Ao falar da vilã, interpretada por Demi Moore - uma das mais bem sucedidas atrizes dos anos 90, que estava desacelerando a carreira - ele diz que ela está "em uma tentativa de volta ao cinema aos 40 anos, com tudo em cima". Apenas anos depois Hollywood passou a problematizar a baixa de bons papéis para atrizes nessa faixa de idade, algo que nunca afetou os homens da indústria. 

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O jornalista "elogia" Cameron Diaz: "A cada bobagem como 'As Panteras', a atriz se firma mais como a Marilyn Monroe de nosso tempo, imbatível em comédias ligeiras, com seu jeito bobo e sacana ao mesmo tempo. Claro que aquele corpão ajuda." Sim, você leu AQUELE CORPÃO AJUDA. O corpo aparentemente era parte essencial do sucesso Cameron Diaz, afirma o texto, e precisava ser citado.

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E ao falar do bom momento profissional de Drew e Cameron, que na época faturava cerca de 20 milhões de dólares por obra, ele diz que "ambas podem quase tudo no set. Quem vai dizer não às duas ou discutir que seria melhor fazer tudo diferente, com mais coerência?", acrescentando que "'As Panteras 2' é na verdade vítima de seu próprio sucesso".

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Ou seja, quem iria querer uma mulher em cargo de liderança? Qual vantagem poderia haver nisso, uma vez que homens jamais fazem filmes ruins, não é mesmo? O papo sobre empoderamento feminino também veio bem depois, junto de uma briga por mais oportunidade para mulheres dirigirem filmes, por exemplo. Hollywood segue bem longe de ter um equilíbrio entre nos gêneros nas funções de chefia.

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Rodrigo Santoro faz uma ponta no filme. Ele é um vilão misterioso que entra mudo e sai calado, mas não sem antes mostrar seu tanquinho - uma piada óbvia em referência à objetificação que filmes como "007" sempre fizeram com as mulheres.

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"Uma ponta cujas falas foram cortadas e na qual passa dois dos três minutos de aparição sem camisa", o critico descreve, e complementa: "Não foi desta vez que o cinema nacional mostrou toda a sua glória aos gringos", já que Rodrigo estava em alta na época, por conta de performances poderosas em filmes como "Carandiru" e "Bicho de Sete Cabeças". Porém, para o crítico, o corpão de Rodrigo não o ajudou a chegar em Hollywood, como acontecia com Cameron Diaz. Curioso, no mínimo. 

Nos anos seguintes esse tipo de texto foi problematizado, o machismo e a misoginia passaram a ser amplamente discutidos, o público reeducou seu olhar, e filmes de ação como mulheres conquistaram seu espaço - "Capita Marvel", em 2019, arrecadou mais de um bilhão de dólares em bilheteria.

Mas nem tudo é perfeito: "As Panteras" teve um reboot com outras atrizes, mais jovens que as dos filmes dos anos 2000 são atualmente, enquanto Tom Cruise seguiu com "Missão Impossível" e está estreando o sétimo filme da franquia aos 61 anos de idade - envelhecer e seguir na ativa é um privilégio em Hollywood que ainda é apenas dos homens. 

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Graças à luta contra a cultura machista, uma crítica como esta acima jamais seria publicada hoje em dia sem ser muito questionada. Ou seja, evoluímos um pouco. É um começo.

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