Como RuPaul perpetua o mito de que o sucesso dos negros depende da aceitação dos brancos

Há 25 anos, RuPaul era destemida e provocadora. Hoje, seu conselho para as queens negras no "Drag Race" revela como mergulhou em políticas de decoro retrógradas.

Kevork Djansezian / AP

RuPaul e Milton Berle enquanto se preparavam para apresentar o prêmio Escolha do Público durante o MTV Video Music Awards em 1993.

Em setembro de 1993, RuPaul Andre Charles, que ainda estava no início de sua monumental carreira, subiu no palco do MTV Video Music Awards ostentando um vestido cintilante ladeada pelo ator e comediante Milton Berle. Perto da imponência de RuPaul e seus impressionantes 1,93m, Berle parecia um acessório sem importância.

A dupla estava lá para apresentar o prêmio de Escolha do Público — que iria para a banda de rock clássico Aerosmith pelo hino político “Livin’ on the Edge” — ostentando a diplomacia de um encontro entre dois chefes de Estado adversários fingindo camaradagem em uma conferência de imprensa nacional. Mas o semblante de RuPaul demonstrava irritação; a partir do momento em que começou a falar, Berle não parou de encarar o peito de RuPaul enquanto lançava sorrisos para o público. "Adoro esse vestido", provocou. "E deveria mesmo, queen", respondeu RuPaul. "É um dos seus antigos!"

A exibição de escárnio e assédio de Berle — ele apalpou insistentemente os seios de RuPaul e, dizem, agarrou a bunda dela nos bastidores — enfureceu RuPaul, que desarmou o comediante com uma sagacidade admirável: "Você costumava usar vestidos e... que engraçado, agora usa fraldas."

Neste icônico momento de pura franqueza, RuPaul não estava atuando, embora estivesse no palco. Ela era, na verdade, apenas uma pessoa normal com o ego ferido diante de milhões de espectadores recusando-se a ser ridicularizada; recusando-se, como escreveu a poetisa Claudia Rankine, a suportar o que não lhe pertencia. Aqui, RuPaul se imortalizou como a imagem de fúria e rebeldia negra. (Anos depois, ela retirou o que disse e se desculpou, explicando que havia permitido que o comportamento inapropriado de Berle afetasse a sua diplomacia: "Nos bastidores, eu deveria ter dito a ele: 'Tire as suas mãos sujas de cima de mim, filho da puta!'")

Mas isso foi em 1993, muito antes do auge da carreira de RuPaul; muito antes que ela aprendesse a editar seus discursos em frente às câmeras e diante de executivos brancos; muito antes de ela se tornar a drag queen mais famosa do mundo; muito antes da primeira temporada de seu elogiado reality show, "RuPaul's Drag Race", em 2009; muito antes da recente conclusão da 10ª temporada do programa, durante a qual ela repreendeu outra drag queen negra por exibir a mesma franqueza e espírito de luta que ela em algum momento aprendeu a esconder.

A drag queen em questão, The Vixen, cujo nome fora dos palcos é Anthony Taylor, chegou ao programa parecendo uma cena deletada de um Bad Girls Club alternativo. "Eu estou aqui para brigar", anunciou, com chifres de búfalo na peruca e punhos em posição defensiva. As outras competidoras ofegaram, visivelmente intimidadas. "Ela é raivosa, pessoal", disse uma queen. E era mesmo. The Vixen, que nasceu no South Site, Chicago, a cidade mais segregada dos Estados Unidos, era muito conhecida pelos seus protestos artísticos e voz política — seu show de drag, Black Girl Magic, nasceu do desejo de dar visibilidade ao talento e à versatilidade de drag queens negras. Ela contou no programa que, em algumas de suas apresentações, cobria um crucifixo com insultos raciais e o batia até que ele ficasse em pedaços.

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Ao longo da temporada, The Vixen despertou a fúria de alguns espectadores devido à sua franqueza e aos debates sem precedentes que levantou acerca do racismo no mundo drag. Em uma ocasião, quando uma queen branca querida pelos fãs a provocou sem a menor cerimônia ("Mas podemos conversar sobre o fato de que sua melhor drag usa uma peruca de outra pessoa?") e depois desabou ao ser confrontada, The Vixen previu como a ótica racial da briga afetaria a empatia do público: "Agora você criou uma narrativa na qual eu sou uma mulher negra enfurecida que assustou a garotinha branca", disse. "Isso sempre vai parecer [para as câmeras] uma questão racial." (The Vixen supostamente recebeu ameaças de morte de espectadores brancos depois que o episódio foi ao ar.)

Durante o andamento do programa, ela construiu uma imagem ao se recusar a ser cordial diante de situações que considerava injustas. Em um importante momento em um dos Untucked, o segmento que exibe os bastidores do programa, enquanto The Vixen e outra queen negra conversavam sobre seus looks, Eureka, uma queen branca veterana, interveio: "Mas vejam, vocês têm esse tipo de drag porque vocês são queens crafty."

The Vixen afirmou que, no mundo drag, dizer que uma queen é "crafty" é uma forma polida de chamá-la de "barata". Esse tipo de comentário é fruto da supremacia branca; é comum que a arte negra seja vista como "crafty" ou "rudimentar" ao mesmo tempo em que a arte branca é aceita como polida e vanguardista. Mas, quando The Vixen ignorou esse comentário, Eureka continuou testando sua paciência até que a conversa se transformou em um festival de berros e acabou com The Vixen gritando: "Vá fumar seu cigarro, bitch, porque acabou por aqui." (Mais tarde, no mesmo episódio, Eureka, em particular, revelou a outra queen, Mayhem Miller, que tinha provocado a briga intencionalmente para "testar" The Vixen.)

Após uma conversa emocionante com Asia O'Hara, nós descobrimos que os problemas de The Vixen com algumas das outras queens eram somente um microcosmo de frustrações maiores devido aos privilégios exclusivos que as pessoas brancas recebem. Naturalmente, as mesmas características que facilitam a vida pessoal de alguém também lhe rendem vantagens como drag. Ainda assim, para os espectadores e muitas das queens do programa, foi mais fácil considerar The Vixen uma "bitch negra raivosa" do que tentar compreender suas questões.

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Para os espectadores e muitas das queens do programa, era mais fácil considerar The Vixen uma "bitch negra raivosa" do que tentar compreender suas questões.

Apesar de ser um dos programas com mais diversidade da televisão — e certamente uma das séries LGBTQ mais populares, se não a mais popular — "RuPaul's Drag Race" raramente aborda as particularidades da questão racial no mundo drag. Ano após ano, queens negras precisam enfrentar ameaças e comentários racistas do fandom. Na nona temporada, alguém invadiu a conta do Instagram de Shea Couleé e publicou imagens de escravos, afirmando de forma debochada que eles eram ascendentes de Shea e fazendo insultos racistas nas hashtags. No "All Stars 3", depois que BeBe Zahara Benet eliminou Aja, as pessoas invadiram os comentários de suas redes sociais, publicando vários emojis de macacos e referindo-se a ela de forma desrespeitosa. Quando, na oitava temporada, Derrick Barry chamou Bob the Drag Queen de "grosseira", usou o mesmo vocabulário racista que domina o fandom branco.

"Queens negras são menos celebradas do que suas companheiras brancas", disse Shea Couleé em uma entrevista recente à Billboard com a escritora Mikelle Street. "Mas é a vida; nós precisamos trabalhar o dobro para receber metade do reconhecimento. O fato de você aparecer na TV não vai mudar a maneira com a qual as pessoas foram treinadas para pensar e sentir."

The Vixen, embora às vezes tenha atitudes hostis — pavio curto e dificuldade de diferenciar provocações e críticas justas —, aparentemente estava muito consciente dessa discrepância ao longo de sua participação no programa. Ela compreendia que sua voz era sua melhor ferramenta e acabou usando-a com frequência para exercer sua liberdade. Mas, assim como acontece em outros reality shows, "Drag Race" cai constantemente no sensacionalismo da edição: a construção de The Vixen como antagonista, uma queen difícil de amar e fácil de rejeitar, foi bem elaborada e engenhosa. Ela afirmou diversas vezes que a conversa mais profunda e importante sobre a questão racial da temporada, e provavelmente de todo o programa, foi excluída.

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The Vixen e Eureka.

Alguém poderia pensar que RuPaul, outrora um retrato de coragem, veria traços de si mesma em The Vixen. Com certeza, de seu ponto de vista estratosférico, eu imaginei que ela se identificaria e compreenderia as raízes dos problemas da jovem queen. No entanto, na reunião da temporada, quando as queens eliminadas e remanescentes se reúnem para conversar sobre a experiência no programa, RuPaul não acolheu nem abordou de maneira responsável as ansiedades raciais de The Vixen; ela preferiu assumir uma postura conivente em relação aos contínuos problemas que envolvem a questão.

Antes dos 10 minutos de episódio, RuPaul aproveitou a oportunidade para recapitular os conflitos de The Vixen. Quando relembrou a briga dela com Eureka — que, lembre-se, Eureka admitiu ter orquestrado com antecedência —, RuPaul crucificou The Vixen por ter mordido a "isca", afirmando que ela sempre tem a "escolha de não dizer nada". Silêncio, ela disse, era o antídoto para a injustiça. "Eu acho que o que Ru está dizendo é que você não precisa aceitar a provocação quando for provocada", adicionou Miz Cracker. Todos esses comentários evocavam as ordens que The Vixen havia recebido ao longo da temporada.

"Eu acho que isso passa uma mensagem horrível para as pessoas negras... de que as únicas opções que elas têm são ficarem caladas ou serem perseguidas. ... Você sente que não tem voz nesse mundo. Por que alguém gostaria de passar essa mensagem?", disse The Vixen mais tarde ao Into.

Uma característica importante e gratificante do projeto "Drag Race" sempre foi a capacidade de dar às competidoras um espaço para serem autênticas — o mantra do programa, que é repetido no fim de cada episódio, é "se você não é capaz de amar a si mesmo, como pode amar outra pessoa?" Ainda assim, por mais de dez minutos, RuPaul atacou o caráter de The Vixen até que ela, não enxergando saída, resolveu ir embora.

"Aparentemente, considerando o andamento das coisas, o encontro não foi pensado para me ajudar", disse ao Into. "Elas não estavam interessadas em conversar sobre as coisas boas que eu fiz ou em abordar os problemas ou celebrar a minha verdadeira jornada. Acho que elas queriam me dar uma lição, mas fracassaram miseravelmente."

Após a saída prematura de The Vixen, Asia O'Hara, que assumiu o papel de matriarca da temporada, ficou emocionada: "É ridículo que nós pensemos nas pessoas de forma tão autocentrada que preferimos deixá-las sofrerem se for difícil ajudá-las. Nós não somos só drag queens; somos pessoas", disse, lutando contra as lágrimas. "E agora uma de nós está lá fora; estamos aqui filmando a temporada do Orgulho e deixamos uma de nossas irmãs sair da porra da sala porque ninguém quer ajudá-la."

A fraternidade de Asia não comoveu RuPaul. Quando ela respondeu, parecia Tyra Banks em seu retorno, cheia de raiva e dando lições de moral: "Olhe pra mim! Olhe pra mim, caramba! Eu venho do mesmo lugar que ela! Você me vê indo embora? Não, eu não vou! Eu aprendi a agir perto das pessoas e a lidar com as merdas! ... Você não pode inventar desculpas para mau comportamento e falta de consideração!"

As filosofias raciais de RuPaul – que incluem a máxima clássica do americano branco "atinja seus objetivos por meio de seus próprios esforços" e estão a uma geração de distância das queens que competem em seu programa – são indicativas de suas políticas de decoro profundamente enraizadas. O "conselho" que ela ofereceu a The Vixen foi apenas um pouco diferente do que já foi defendido por Bill Cosby, Charles Barkley ou Ronald Reagan — o apelo à responsabilidade e às regras de comportamentos pessoais dos negros; isso implica que The Vixen, ao fazer barulho e insistir em abordar o racismo, mostra-se alguém sem disciplina e respeito.

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Ao exigir que The Vixen abrace a cultura do silêncio, ao esperar que ela controle sua raiva para parecer menos dissonante e ameaçadora, RuPaul rouba a voz com a qual ela contesta o mito branco de que os negros são inferiores.

É muito frequente que o fardo da civilidade e da cortesia caia sobre os ombros dos oprimidos. Ao exigir que The Vixen abrace a cultura do silêncio, ao esperar que ela controle sua raiva para parecer menos dissonante e ameaçadora, RuPaul rouba a voz com a qual ela contesta o mito branco de que os negros são inferiores. Não existe um jeito "certo" de se comportar em meio à desigualdade. Críticas tão arcaicas contradizem diretamente tudo o que a própria arte drag defende. Quando um protesto artístico, ou qualquer protesto em geral, já foi comportado?

Certamente, o tom de policiamento de Ru, a manipulação psicológica e o comportamento de "bom negro" derivam de um instinto de sobrevivência primordial. RuPaul vem de uma época em que precisava disfarçar suas maneiras a fim de se tornar mais palatável para um público predominantemente branco. Mas esse discurso controverso e batido que defende o silenciamento com a intenção de apaziguar os humores entra totalmente em conflito com o que o programa deveria defender e tem defendido. Enquanto o sucesso dos negros for apresentado como algo que depende da aceitação dos brancos, a libertação não é nada mais do que um delírio.

"Senti como se... falássemos uma língua diferente. O objetivo é melhorar as coisas para a próxima geração, não se tornar parte do problema e dificultar tudo", disse The Vixen ao Into. "Mas ela apenas se tornou parte do sistema."

Nos últimos meses, a imagem bem construída de RuPaul como uma figura elegante e respeitável na comunidade drag vem sendo desconstruída aos poucos — particularmente depois que ela afirmou que não deveria permitir a participação no programa de mulheres transgêneras que tenham feito transição com medicamentos. "Você pode se dopar sem deixar de ser um atleta, mas não pode participar das Olimpíadas", tuitou, aparentemente esquecendo-se das queens veteranas homens que competiram com diversos implantes, aplicações e outras modificações corporais. (Posteriormente, ela se desculpou de forma vaga.) Cada vez mais, Ru demonstra como está distante do ritmo cultural — desde as suas declarações a respeito do decoro negro até suas ideias anacrônicas envolvendo pessoas transgêneras.

Claro que o mundo drag deve muito a RuPaul. "Drag Race" promoveu essa arte à cultura mainstream, dando visibilidade a uma forma artística que vivia às sombras. Mas ela não está acompanhando a evolução. Não estou dizendo que The Vixen era perfeita — ela ocasionalmente comete erros de julgamento, assim como todo mundo. Mas é visível que Asia O'Hara, 20 anos mais nova que RuPaul, parece séculos à frente dela em suas visões progressistas. Isso revela o quanto RuPaul e, portanto, seu programa são antiquados. Para Ru, The Vixen, dominada por sua raiva e por ataques esporádicos de infantilidade, não tem salvação; para Asia, ela é simplesmente humana.

Talvez seja hora de renovar o "Drag Race" e dar sua presidência a Asia O'Hara ou alguém como ela. Isso, para mim, seria o começo de algo maior — de algo com mais amor. ●

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A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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