Como o Jack de "Titanic" fez com que eu me descobrisse lésbica

No filme, Leonardo DiCaprio se parece muito com as meninas que eu viria a namorar anos depois.

Everett Collection

Kate Winslet e Leonardo DiCaprio em "Titanic", 1997.

Muitos anos antes de finalmente perceber como sou extremamente lésbica, eu era apaixonada pelo Jack Dawson, interpretado pelo Leonardo DiCaprio.

"Titanic" passava frequentemente em nossa casa durante a minha infância e nós tínhamos também o conjunto magnífico, épico, colossal de duas fitas VHS do filme. Ainda hoje, sempre que assisto na TV a cabo, o que ainda é frequente, sinto o desejo automático de levantar e trocar a parte dois do VHS após o capitão dizer: "Eu acredito que isso sairá em todas as manchetes, Sr. Ismay", que é exatamente quando a fita #1 terminava.

"Titanic" satisfez tanto os meus requisitos de entretenimento, quanto dos meus quatro irmãos, o que era raro, já que éramos de idades e perfis muito diferentes. Para os meninos, "Titanic" oferecia desastre e matança. Para as meninas, havia uma história de amor. E para mim, ele representava os dois. Em uma época anterior aos fóruns online dedicados a celebridades, eu não percebi que era apenas uma das milhares de garotas ao redor do mundo que haviam se tornado vítimas da "Leomania" — eu pensava que o Leo era especial só para mim, minha irmã e algumas das minhas amigas, cujos pais não tinham considerado "Titanic" violento demais ou sexualmente impróprio para pré-adolescentes.

Eu amava as mesmas coisas em Jack (e, por consequência, em Leo) que todos amavam: sua doce vulnerabilidade, seu jeito artístico de ver o mundo, sua beleza de fazer o coração disparar. Foi apenas muito posteriormente, após eu me assumir lésbica, por volta do fim da faculdade, que comecei a notar que eu não era a única lésbica que já foi apaixonada por Jack Dawson. Em festas com amigas sapas, o nome de Leo inevitavelmente surgia durante conversas sobre os galãs que desejávamos quando éramos pré-adolescentes. Às vezes também surgiam os nomes de Will Smith em "Um Maluco no Pedaço", Johnny Depp em "Cry-Baby" e Devon Sawa, ator que fazia a versão humana do fantasma Gasparzinho e dançava com a Christina Ricci. Todos estavam permanentemente impressos em nossos corações lésbicos latentes – porque todos eles pareciam com lésbicas.

Leo, com a carinha de bebê aos 22 anos quando filmou "Titanic", compartilha um certo estilo com o tipo de mulheres e pessoas não-binárias com quem eu tendo a namorar hoje, de sua androginia inclinada ao masculino ao seu estilo de cabelo anos 90. Além disso, aqueles figurinos me atraíam muito: a flanela! O veludo! Os suspensórios!!! Tão lésbicos que dói. Ele era a sapa bofinho dos meus sonhos. (Eu sei que a frase "parece com uma lésbica" é um estereótipo e quero deixar claro que nós não somos todas iguais.)

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Mikel Roberts / Getty Images

Algumas mulheres lésbicas têm certeza absoluta que gostam de outras meninas desde muito jovens. Outras, como eu, cresceram bem heterossexuais até a puberdade prevalecer. Pensando bem, consigo identificar indícios da minha homossexualidade durante minha adolescência e início da vida adulta, mas nunca fiquei a fim de nenhuma das minhas amigas. Durante a maior parte do tempo, eu estava perfeitamente feliz namorando garotos — ou, devo dizer, tão feliz quanto possível ao namorar meninos adolescentes sem noção e emocionalmente subdesenvolvidos.

Como uma adolescente que mergulhava os olhos em sombra preta e usava dois cintos de rebite, um em cima do outro, ficava maluca com os moleques magrelos e efeminados que andavam nos meus círculos sociais rebeldes — meninos com jeans apertados, cabelos tão longos, desafiadores da gravidade e tingidos quanto os meus, que conseguiam usar o delineador melhor do que eu. Eles eram alternativas melancólicas e anêmicas ao estilo malhadão que eu não conseguia suportar.

Mas um dia até os adolescentes mais andróginos cresceram. Os rostos de bebê delicados deram espaço para mandíbulas fortes com barbas, os corpos magros ficaram mais fortes e se tornaram estranhos para mim. No momento em que esses meninos se tornaram jovens homens, minha atração por eles acabou na velocidade da luz. E, embora possa ter parecido assim para mim na época, não acho que minha opção se resumiu a uma aversão ao gênero "masculino" — eu não tinha nojo dos caras que namorei, mas comecei a me sentir entediada, e começou a parecer errado por uma série de razões complicadas relacionadas a apresentação e identidade e o coquetel complicado da sexualidade humana. O ponto é: eu era, de fato, lésbica.

Às vezes, me pergunto se eu teria descoberto toda a coisa sapa mais cedo se tivesse crescido com representações da cultura pop mais variadas de meninas andróginas ou masculinas. Eu mantive profundamente enterradas paixões em ícones da androginia feminina dos anos 80 e 90, de Mary Stuart Masterson a Winona Ryder, mas como suas personagens eram constantemente forçadas a romances heterossexuais (ou, no caso de "Tomates Verdes Fritos", a homossexualidade era fortemente implícita, mas nunca foi explícita), eu fiz a suposição bem comum para o homossexual iniciante, de que meus sentimentos inquietos em relação a personagens femininas vinha de querer ser elas, e não dormir com elas.

Mas ao menos eu tinha Leo no "Titanic". Jack era levemente masculino, mas não preso a isso — o oposto de Cal de Billy Zane, noivo de Rose, cujo apego frágil ao seu próprio sentido de masculinidade faz dele um monstro que arremessa mesas, bate em mulheres, sedento para atirar em tudo. Jack também não tinha medo de declarar seus sentimentos (um precursor aos meninos emos que amei na vida real) ou ser gentil com os outros (ele dizendo "você ainda é minha melhor garota, Cora" para a menininha na cena da dança no deck inferior mexe comigo todas as vezes).

Talvez, acima de tudo, ele era livre — liberto da forma que a Rose de Kate Winslet, presa em sua gaiola dourada, queria ser e eventualmente se tornou, graças a ele. Ele não era muito diferente das meninas lésbicas por quem eu me apaixonaria posteriormente na vida.

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20th Century Fox / Courtesy Everett Collection

Eu entendi tudo errado. Eu queria estar com Jack, claro, mas com o tipo de desejo confuso de uma menina pré-puberdade sem uma boa compreensão da verdadeira mecânica do sexo. Como todos os outros caras andróginos que amei, de Jesse McCartney em "Summerland", aos homens em bandas emo que decoraram as paredes do meu quarto na adolescência, Jack era apenas uma tela em branco e andrógina sobre quem eu podia projetar minhas fantasias semi formadas e complicadas. Isso é algo que acho que a maioria das meninas, heterossexuais, bi ou lésbicas, tinham em comum quando eram jovens. Na verdade, eu só queria ser Jack, alguém que se lançou na viagem de uma vida e ficou com a garota.

Acho que eu era apaixonada tanto pelo Jack quanto pela Rose, na verdade. Como uma pessoa lésbica que é atraída tanto por pessoas com inclinação masculina quanto feminina, minha mudança de identificação para desejo está em constante fluxo. Como uma pré-adolescente, eu ficava profundamente e completamente envergonhada sempre que a cena de "Me desenhe como uma de suas garotas francesas" surgia — meus irmãos e eu sempre fingíamos estar distraídos por alguma coisa, ou simplesmente saíamos do ambiente — mas me encontrei assistindo a ela sozinha, tarde da noite, quando todos já tinham ido dormir. Essa foi a única vez que assisti à cena inteira, e pareceu que eu estava fazendo algo muito, muito ruim.

Sempre pensei que um dos motivos pelo qual eu não "virei" lésbica antes é porque, por muito tempo, eu era atraída pela ideia de homens se sentindo atraídos por mim — isso me levou com facilidade dos meus anos de pré-adolescência torturantes até meu tempo no ensino médio. Eu tive um namorado legal e normal que me amou. Por muito tempo, isso foi o suficiente. Então, quando eu era mais jovem, pensei que estava assistindo a cena de desenho de "Titanic" puramente pela perspectiva de Rose — canalizando o erotismo de ser observada e procurada por homens — mas é claro que eu facilmente me coloquei na perspectiva de Leo também, embora eu tivesse medo por muitos anos de admitir isso para mim.

O poder de Leo como Jack Dawson vive com tanta força, é claro, porque depois que ele fica com a garota, ele perde tudo. Ele não se juntou a Rose na porta após o naufrágio, flutuando no meio dos detritos e afundando, muito para o horror e a consternação de todos, e sua morte o deixa congelado para sempre como um sonho de 22 anos no oceano profundo.

Leonardo diCaprio, como os caras na minha vida real, continua envelhecendo — tornando-se o tipo de homem que não me atrai nem remotamente — mas Jack continua vivo, um modelo de androginia da terra do nunca. Ele permaneceria para sempre preso dentro do relógio após as três horas de "Titanic", exatamente como ele estava confinado apenas às lembranças de Rose; ele sempre seria doce e inocente e estaria seguro, alguém com quem eu poderia fantasiar até enjoar, mas nunca teria que tocar. Essa foi sua magia lésbica para mim e para muitas outras meninas, que depois cresceram e descobriram o que realmente estavam procurando. ●

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A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Victor Nascimento.

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