Como é falar uma língua diferente da dos seus pais

Meus pais e eu nos comunicamos em uma mistura incompleta de bengalês e inglês. Às vezes me pergunto o que estamos perdendo.

James Chapman/BuzzFeed

Em bengalês – a língua materna dos meus pais, falada em Bangladesh e em parte da Índia – eu não consigo ler, distinguir esquerda e direita, ou descrever os diferentes tipos de amor. Não consigo contar acima de dez, recitar o alfabeto, falar a minha idade, e não consigo dizer “obrigado” ou “desculpa”. Meus pais vivem na Inglaterra há quase quatro décadas, mas o inglês deles foi sempre contextual, moldado pelos aspectos mais cotidianos, como cuidar da casa, gerir um negócio e colocar as filhas na escola, nada que eu consiga entender claramente. Quando estamos nos falando, nunca usamos mais que uma palavra – duas sílabas, no máximo – para descrever um sentimento. Gostaria de saber se eles são exatamente o que eles parecem ser: indiferentes, felizes por não saberem coisas que poderiam deixá-los infelizes.

Ao longo dos anos, chegamos a um estranho acordo: falar metade em inglês e metade em bengalês. O termo linguístico é “benglish”. O benglish aparentemente opera com regras facilmente identificáveis, mas você não se sente assim ao falar e fazer o equivalente linguístico ao que seria tentar encaixar formas de estrelas em espaços quadrados. Convenientemente, as combinações do benglish estão centradas principalmente nas ações: To-mah-gessa-explain-korr-muh (literalmente: “você explicar eu vou”), ou Ah-me-try-korr-muh anyway (“estou tentar ir de qualquer maneira”).

No verão passado, estive por duas semanas em uma pequena cidade brasileira chamada Paraty, levando no bolso um punhado de frases em português. Em um dos almoços, fui a um restaurante self-service de comida para viagem. Aprendi com os meus pais migrantes que comida e dinheiro são as coisas mais fáceis de trocar, então coloquei alguns legumes empanados em uma embalagem de alumínio e mostrei dez reais para o homem atrás do balcão. Como eu gosto de fritura e odeio conversa fiada, então não importava voltar para o silencioso e úmido quarto de hotel e comer sozinha, pois eu estava cansada de fazer gestos de saudações para os funcionários com um sorriso forçado. Eu me sentia como se estivesse vendo o mundo ao meu redor através do canudinho embrulhado que tinham me dado para o refrigerante.

Ao voltar para a Inglaterra, decidi que precisava aprender outro idioma. Como eu estava me entretendo no Rosetta Stone, o software de ensino de línguas (“eu sou uma mulher” ainda é minha única frase em espanhol), meus pais me chamaram e eu fiquei meio que sem saber o que falar durante a conversa. Eu não mencionei o espanhol. Como eu ia falar para eles que eu estava mais interessada em aprender uma língua que é completamente estranha para eles do que em melhorar a que eles tinham me dado?

Escolher entre uma língua ou outra era como um jogo de soma zero, ou seja, o ganho de um significava uma perda para o outro. Que tipo de pessoa eu queria ser? Sempre tinha sido mais fácil cortar rapidamente nossas conversas que explicar em bengalês minhas preocupações caprichosas, culturalmente específicas. Estou comendo pão sem glúten agora. Fui a um evento de arte participativa – eles são sempre muito decepcionantes, mas eu continuo indo. Algo importante aconteceu no Twitter. Todo meu ar pretensioso em inglês parecia idiotice em nosso benglish escasso e funcional. Quando você nunca se sente satisfeito com você mesmo, parece um desafio divertido abraçar a complexidade. No Brasil, as pessoas me olhavam com atenção: eu não era uma indiana de verdade. Na Inglaterra, entre os parentes, eu não sou uma bengalesa de verdade. Entre os amigos que não são muçulmanos, eu provavelmente não sou uma muçulmana de verdade. Ao falar uma segunda língua europeia, ao invés de parecer culturalmente confusa, eu me tornaria culturalmente confusa. A confusão estratégica parecia melhor – e mais viável – que ter que me encaixar em algum lugar.

Publicidade

James Chapman/BuzzFeed

O bengalês, por outro lado, pode atrofiar. Mas minha insuficiência na língua talvez nunca seja um problema. Meus pais vêm de um país que lutou violentamente pela independência, em 1971, tendo como princípio ter a própria língua, mas meu pai – na época um adolescente vivendo na Inglaterra – diz não entender porque as pessoas em Bangladesh não continuam falando bengalês em casa e a língua urdu, imposta pelo estado, no trabalho e em público. Minha mãe uma vez sugeriu que eu aprendesse a ler em bengalês, mas parecia um capricho da parte dela (que inclui em sua totalidade uma tarde revisando as letras arredondadas do alfabeto bengalês). Eles agora têm netos na Inglaterra, e seus laços com Bangladesh foram desfeitos. O desejo de viajar, em ambos os lados, diminuiu. A vida cotidiana na Inglaterra os consome e engole a língua deles.

Mas toda vez que eu falava com meus pais, ou me sentava em silêncio e envergonhada na frente de um simpático membro da família, eu conseguia sentir os vestígios do bengalês se chocando contra mim. Parecia algo abandonado, imutável. Eu poderia me afastar da língua, mas ela estaria lá me esperando, independentemente de quantas outras eu tentasse falar.

Minha relação com a língua materna dos meus pais não é idêntica à minha relação com eles, mas as mudanças em uma se refletem de alguma forma na outra. Quando eu era criança, o bengalês era a língua de complô paterno. Era a língua que meus pais usavam quando estavam, em minha opinião, conspirando contra mim. Às vezes a relação de poder mudava de lado. Quando eu fiquei mais velha, eu escrevia em inglês meus próprios atestados médicos para a escola. Tive conversas longas e ultrajantes no telefone na frente deles. Apesar disso, o benglish parecia mais um obstáculo construído para um propósito que uma ponte entre dois fortes. Eles me faziam repassar para eles as histórias de um programa infantil, pois, para mim, eram mais fáceis de explicar que as notícias do telejornal. Quando eu era adolescente, eu lia e analisava artigos do jornal Daily Telegraph para eles.

Eles nunca enviam mensagens de texto ou entram na internet. Eu não consigo transmitir confiança para eles da mesma forma que eles casualmente me transmitiram. Perguntei pra minha mãe se ela queria que o meu bengalês fosse melhor.

“Não! Seu bengalês é bom, muito bom. Eu sempre entendo o que você fala.”

“Mas eu nunca consigo falar sobre as coisas que me interessam. Como um livro ou um filme. Como eu posso dizer o que ele me fez sentir, por exemplo?”

“Você pode dizer em bengalês: ‘o filme é muito bom; este filme é muito apropriado para nossa cultura’.”

Não sei a qual cultura ela estava se referindo. Eu perguntei como ela se sentia vendo minha irmã e eu crescer falando principalmente em inglês. Ela disse que sentia pena que não podia participar.

Conversei com minha irmã, que falou sobre o quanto ela se esforça para falar e entender a língua dos nossos pais. Ao contrário de mim, ela usa a língua sempre que tem a oportunidade. Às vezes nossa mãe traduz o bengalês dela para nosso pai, pois ele não entende. Quando minha irmã fala com ele sozinha, eles se alternam entre as duas línguas, pois ele acha mais fácil se expressar para ela em inglês. Mas ela insiste em falar bengalês, consciente de que sua compreensão só vai piorar com o tempo. É como observar uma comunicação que vai e vem entre uma pessoa local efusiva e um turista, ambos sentindo momentaneamente que entenderam e foram entendidos antes de seguir caminhos separados rumo à incompreensão e então voltar e se encontrar novamente. Cada família tem sua própria língua, mesmo se essa língua for composta de duas línguas distintas. Às vezes essa língua aparece escorada como uma defesa contra o futuro, destinada a desmoronar.

Mas tem coisas que eu não consigo relacionar a apenas um idioma, pois elas vêm de ambos. Eu só consegui identificar essas ligações no ano passado. Um momento decisivo foi quando uma amiga disse que gostava do fato de eu nunca presumir se alguém é homem ou mulher com base em uma vaga descrição de seus atributos ou interesses: sem pensar, eu diria “eles”. Num registro formal do bengalês, homens e mulheres não possuem gênero nas discussões. Meu feminismo estava sendo expresso nos vestígios de uma língua que por muito tempo eu tinha visto como hostil, desde um feriado estúpido e sufocante em Sylhet, uma cidade de Bangladesh, quando eu tinha 16 anos e não podia sair de casa desacompanhada, nem expressar por que isto era uma afronta.

Publicidade

James Chapman/BuzzFeed

Apesar disso, eu secretamente sempre senti ciúmes das crianças da minha idade, da primeira geração de filhos de imigrantes, que perguntavam com descrença: “você não querem aprender bengalês?” Como se eles fossem usar essa língua para algo divertido. Eles sempre voltavam orgulhosos de suas férias de verão, como se tivessem conseguido lidar com as situações mais adversas enquanto estiveram longe. O ressentimento se desvaneceu quando aprendi mais sobre mim mesma. Eu não sou uma viajante nata. Tenho que imaginar uma relação com o lugar antes de ir, dar uma forma para o conteúdo. Eu adoro fazer itinerários: minhas conversas com estranhos são em grande parte involuntárias. Em segundo lugar, o bengalês utilitário que herdei não é inspirador. Nenhum ideal de segunda língua de ninguém é uma língua que você só pode usar com algumas pessoas em situações extremamente mundanas. Eu estava dividida entre querer seguir em frente sem nostalgia e me perguntar compulsivamente: para que serve essa língua?

Pouco antes de começar o meu mestrado, passei ótimas semanas na Biblioteca Britânica lendo tudo o que eu queria. Curiosamente, meu primeiro impulso foi ler sobre Bangladesh e sua história. Eu li relatos pessoais da Guerra de Libertação; preenchi o mapa de Bangladesh – aquela gota minúscula – com ativistas, defensores da liberdade das mulheres, desalojados. Eu senti o choque de decepção após a independência, a desordem dos anos seguintes. Eu queria ouvir mais.

Ter novas perguntas para fazer aos meus pais – mesmo sendo sobre um passado remoto geograficamente – me fez ver outros lados deles. Meu pai é profundamente conservador, e as histórias da minha mãe cristalizam uma única imagem surpreendente. Eu faço as perguntas em inglês, e eles me respondem em bengalês. Pedimos uns aos outros para explicar novas palavras e emoções. Nosso terreno comum é abstrato, construído em parte na minha imaginação e nas lembranças deles. Eu sei que preciso escrever sobre essas vidas, e que para fazer isso vou precisar aprender a falar a língua corretamente. Eu tenho agora um futuro com ela, o bengalês é uma coisa à qual vale a pena se agarrar.

Publicidade

Veja também