Clitóris que parecem pênis: o que justifica uma cirurgia?

Nossos órgãos se definem por seu componente biológico ou pela aparência que assumem?

BuzzShe

Depois da minha última coluna, recebi alguns comentários criticando a minha posição, mensagens que me acusavam de estar "normalizando uma indústria bilionária que teria como alvo curar, através da cirurgia de redesignação sexual, a homossexualidade de homens".

Essa crítica faz eco a outro ponto de vista já discutido nas minhas colunas, o de Aguinaldo Silva, um dos pioneiros na construção do movimento homossexual brasileiro em fins dos anos 1970, para quem a condenação do médico Roberto Farina, por ter realizado tais cirurgias, seria fruto da hipocrisia da nossa sociedade e que "a única discussão realmente válida em torno do tema" seria (Lampião da Esquina, ed. 05, outubro de 1978, p.05):

"O transexualismo — fenômeno referente às pessoas que têm o corpo de um sexo e a mente de outro — é um fato científico, ou apenas uma figura criada pela medicina para justificar esse tipo de operação? Afinal, só se começou a falar em transexuais depois que os médicos descobriram que podiam operá-los. Não teria essa operação o objetivo de conseguir lucros às custas de homossexuais que, tendo aprendido desde cedo que em matéria de sexo só existem duas opções, e rejeitando aquela que a natureza supostamente lhes destinou, procurariam na outra uma saída para sua insatisfação?".

Silva continua a sua crítica no parágrafo seguinte, afirmando que, se essa discussão fosse feita, "se chegaria facilmente a uma discussão bem mais ampla: a da medicina como instituição que visa o lucro". Discussão perigosa, ele prossegue, pois aí entrariam em questão outras tantas cirurgias que, mesmo o bom senso as considerando "dispensáveis", são feitas com frequência cada vez maior. Silva cita a cesariana como exemplo e hoje, mais de 40 anos depois, procedimentos cirúrgicos que se enquadrem nessa condição é o que não faltam.

Um exemplo muito ilustrativo foi veiculado alguns dias atrás, numa matéria do "UOL" sobre uma nova técnica cirúrgica inventada no Brasil para redução do clitóris. Na matéria, a colunista Lúcia Helena fala sobre um "problema" que tem afetado cada vez mais mulheres: "um clitóris tão avantajado que deixaria até mesmo de merecer o nome que tem", visto que, em alguns casos, ele chega a se assemelhar a "um pequeno pênis".

"O tamanho desproporcional", continua a colunista, "não alteraria a função desse órgão que parece só existir para dar à sua dona momentos de diversão e gozo". No entanto, "o constrangimento de exibi-lo na hora agá do sexo" pode ser suficiente para desfazer todo o prazer que ele poderia proporcionar, razão do aumento da procura por cirurgiões que resolvam esse "problema". A causa do "problema", segundo a matéria, estaria ou em algum desequilíbrio nas glândulas adrenais, manifestando-se desde a infância, ou no "uso abusivo de testosterona pela mulherada que bota fé na substância para tornear os músculos, secar a barriga e turbinar os ânimos".

A função do órgão não estaria prejudicada, percebam, a questão sendo puramente estética. Mas o que "puramente" significa aqui? Seria o caso de mandarmos essa mulher procurar psicólogues para aprender a aceitar o próprio corpo? Quem sabe apresentar a ela discussões feministas que problematizam padrões corporais? E se nada disso for suficiente, será ético permitir que ela passe por semelhante procedimento cirúrgico para não precisar sentir mais o constrangimento de possuir um clitóris avantajado?

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São questões complexas e, infelizmente, elas não serão resolvidas jogando a culpa apenas nos ombros da medicina. A medicina não é mocinha nem vilã nessa história, ela é um dos elementos numa trama complexa de fatores. E, assim como não devemos subestimar o conflito de certas mulheres que recorrem à diminuição cirúrgica do próprio clitóris, também não deveríamos tratar como bobagem o desejo, por parte de outras mulheres, de possuir uma vagina e mesmo o de construí-la no bisturi.

A leitura da matéria acima me faz, inclusive, pensar numa questão: o que é um clitóris? Seria o "pequeno órgão erétil do aparelho genital feminino, situado na porção mais anterior da vulva, que se projeta entre os pequenos lábios, e é composto de uma glande, um corpo e dois pedúnculos", como reza o dicionário Houaiss? Ou, na verdade, seria aquilo que parece um clitóris, aquilo que se adequa a uma expectativa tanto social quanto pessoal de como um clitóris deveria ser?

Pessoas que, por exemplo, precisaram retirar o seio, devido a um câncer, e recorreram, então, a uma prótese: teriam elas agora um seio ou, na verdade, aquilo seria apenas uma bolsa de silicone implantada sob a pele? O mesmo se poderia perguntar para próteses de perna e braço e outros tantos dispositivos que a ciência inventou, transformando radicalmente as nossas noções de corpo humano e do que ele comporta.

E mulher, o que seria mulher? Pessoa com cromossomos XX, pessoa que nasceu com vagina, pessoa que se diz mulher ou pessoa que parece uma mulher? Parece de acordo com quem, aliás?

Tenho certeza que mulheres, quaisquer que sejam as definições em que se baseiem para determinar o próprio gênero, já ouviram muitíssimas vezes frases do tipo "você está parecendo um homem com essas roupas, com esse comportamento". Isso, por si só, já seria suficiente para desconfiarmos de que "mulher" não é algo que diz respeito apenas a uma condição cromossômica ou genital. Inúmeros outros elementos poderíamos trazer para reforçar essa desconfiança, sobretudo num momento da história em que já conseguimos reconstruir/redesenhar genitais em mesas de cirurgia.

O ser humano se descobre capaz de erguer edifícios gigantescos, dos mais variados tipos, daí constrói aviões, espaçonaves, estações espaciais, e as pessoas ainda ficam surpresas ao perceber que esse desejo transformador não pararia por aí, voltando-se também na direção dos nossos próprios corpos. E isso não é uma defesa de que devemos sair modificando tudo... é uma simples constatação de que não podemos mais ignorar a possibilidade dessas modificações.

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