Cadê a trama das personagens lésbicas e bissexuais na TV?

Pode até haver representatividade, mas as personagens sáficas não estão tendo boas tramas para se desenvolverem.

Gostamos de pensar que estamos sempre em um processo de progressão, principalmente quando falamos de pautas LGBTI+. Hoje, estamos melhor que há 5 anos. Lá, estávamos melhores do que há 10 anos e por aí vai. Mas será mesmo? A presença de personagens sáficas (mulheres que se relacionam com mulheres) na TV talvez nos mostre que não é bem assim.

O casal Maya (Danielle Savre) e Carina (Stefania Spampinato), da série "Station 19". Crédito: Tenor

Uma pessoa espectadora mais desatenta, e que provavelmente não faz parte da comunidade LGBTI+, pode discordar desse ponto. “Como assim? Hoje em dia, temos vários personagens LGBTI+ nas novelas!”, alguém pode dizer. E é verdade. Há até alguma representatividade, principalmente de personagens gays (em primeiro lugar), lésbicas e bissexuais, no audiovisual, mas quem são essas pessoas? Quais histórias estão sendo contadas sobre elas? Com que frequência elas aparecem na trama? 

Se repararmos bem, existe um roteiro quase fixo para tratar personagens LGBTI+ na ficção. Em primeiro lugar, os de maior sucesso e representatividade são os gays. Quando eles estão na trama, há uma tendência enorme de que sejam completamente estereotipados. A representação, geralmente, é a do homem gay caricato e engraçado, que, por vezes, cai na graça do público.

O personagem Crô, vivido por Marcelo Serrado em "Fina Estampa". Crédito: Tenor

Ao longo dos últimos anos, tivemos o Félix, personagem de Mateus Solano em “Amor à Vida”, o Crô, interpretado por Marcelo Serrado em “Fina Estampa” e, mais recentemente o  casal Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo) em “Terra e Paixão”. 

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Agora, voltando à análise dos personagens LGBTI+ na ficção: eles também costumam ser os únicos LGBTI+ de suas tramas. “O que é muito engraçado porque, na vida real, a gente sabe que pessoas LGBTI+ costumam andar juntas, mas nas novelas elas estão boiando no universo”, diz Bia Crespo, roteirista e escritora, com quem eu conversei para escrever esta coluna. 

Seguindo esse roteiro, os personagens LGBTI+ tendem a ter uma história em comum também (com exceção dos gays cômicos, que já surgem como gays desde o princípio): suas tramas geralmente são baseadas no momento em que se entendem como parte da sigla e/ou o momento em que decidem expor para a sociedade suas orientações sexuais ou identidades de gênero. 

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Claro, essas histórias são importantes e têm o potencial de ajudar muita gente que passa por esse momento, geralmente de muita apreensão e ansiedade, mas será mesmo que só temos essas histórias para contar sobre pessoas LGBTI+?

Rosamund Pike e Eiza González em "Eu me Importo". Crédito: Netflix/Reprodução.

Eu me lembro bem que quando a Netflix lançou o filme “Eu me Importo”, eu, minha esposa e nossas amigas que se relacionam com outras mulheres ficamos ansiosas para assistí-lo. Afinal de contas, não é todo dia que a gente vê um filme com um casal sáfico como protagonista (interpretado pelas atrizes Rosamund Pike e Eiza González) e cuja trama principal não seja sobre ser LGBTI+. Eram apenas duas mulheres com caráter bastante questionável dando golpe em pessoas idosas! Maravilhoso. 

Um tempo depois, também nos animamos com a ideia do filme “Alguém Avisa?”. A premissa era boa: um filme de natal (como os trezentos filmes heterossexuais natalinos lançados todos os anos), porém com um casal sáfico como protagonista. Mas com alguns minutos de filme já dá para perceber que a temática de “sair do armário” faz parte da trama central. Ainda assim foi legal ter um filme natalino com personagens sáficas!

Repare que esses dois exemplos que eu trago aqui são de produtos norte-americanos. Se lá fora a discussão já é complexa, aqui no Brasil é ainda pior. 

“Nos EUA, por exemplo, há muito mais abertura. As personagens LGBTI+ têm mais arcos dramáticos, isso é inegável. Claro que existem outros problemas, por exemplo, há uma questão dos personagens gays e lésbicas, com frequência, serem assassinados. Essas são discussões que o público norte-americano tem há mais de 10 anos. Mas esse já é um segundo passo porque, para isso acontecer, foi preciso ter personagens LGBTI+ o bastante para haver essa questão. No Brasil, agora, a gente tem personagens LGBTI+, principalmente sáficas, que estão lá, mas não têm trama. É uma representatividade vazia. Fala-se que estamos lá, mas estamos de enfeite, é quase uma figuração de luxo”, explica Bia. 

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Na época, a Globo respondeu que “toda novela está sujeita à edição”. No entanto, me parece bem estranho que apenas os beijos de casais LGBTI+ sejam cortados enquanto temos diversas cenas de beijo e sexo de casais heterossexuais, né?

As personagens Clara e Helena, de "Vai na Fé". Crédito: Rede Globo/Reprodução.

A atriz Regiane Alves falou sobre isso em uma entrevista para a revista Caras: "Gravamos as cenas dos beijos, mas um pedido de dentro da Globo para ter mais cuidado fez com que não fossem ao ar. Estamos em 2023, faz parte da sociedade, sim!”.

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Agora, volto ao ponto do início desta coluna: não é que estamos parados no tempo. Isso já seria ruim, por si só, mas o ponto aqui, principalmente em relação a casais sáficos, é que estamos regredindo. 

“Isso de ter personagem LGBTI+ em novela e não ter trama é um retrocesso. No anos 80, em 'Vale Tudo', por exemplo, nós tínhamos um casal de mulheres com trama”, comenta Bia. 

Isso não quer dizer que tudo eram flores, porque, claro, não era. Até porque o Brasil havia acabado de sair da ditadura. A novela também traz algumas controvérsias porque a personagem Cecília (Lala Deheinzelin) morre em um acidente de carro. Mas é justamente esse ponto que traz a trama do casal. Com a morte de Cecília, a novela abriu uma discussão de quem ficaria com os seus bens, já que ela se relacionava com Laís (Christina Prochaska).

Laís e Cecília, em "Vale Tudo". Crédito: Rede Globo/Reprodução.

“Isso é nocivo, mas a trama da morte levantou um debate sobre herança, porque na época não tínhamos união estável e nem casamento civil para pessoas do mesmo gênero. Então, já se debatia algo que não era apenas sobre ser LGBTI+”, conta Bia. 

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De lá para cá, houve tentativas – algumas mais felizes, mas a maioria completamente frustradas. Alguns dos casais formados por mulheres nas novelas dos últimos anos são:

Crédito: Reprodução Rede Globo.

“Torre de Babel” (1998): O casal Leila e Rafaela (Christiane Torloni e Silvia Pfeifer) precisou ser assassinado devido ao “incômodo” do público (que podemos chamar de homofobia, né?).

“Mulheres Apaixonadas” (2003): Alline Moraes e Paula Picarelli viveram as personagens Clara e Rafaela. Talvez, esse casal tenha ganhado um dos maiores tempos de tela entre os casais sáficos das novelas brasileiras, mas, ainda assim, não chegaram ao protagonismo.

“Senhora do Destino” (2004): Mylla Christie e Bárbara Borges viviam o casal Eleonora e Jenifer, que também não tinha protagonismo e nem uma grande trama na novela. 

“Em Família” (2014): Clara e Marina (Giovanna Antonelli e Tainá Muller) conquistaram rapidamente o público sáfico, possuíam trama e até apareciam na tela com frequência, mas as cenas de romance ficavam mais na “amizade” do que em algo físico. Os beijos, mais selinhos do que qualquer outra coisa, foram aparecer já na reta final da novela. 

“Babilônia” (2015): A ideia era falar sobre um casal lésbico na terceira idade, mas foi só exibir um selinho entre as personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg que o público desaprovou, o que levou à diminuição de cenas entre as duas.

Há diversas teorias que tentam explicar o retrocesso e eu me atenho na explicação da Bia, que funciona não só para a Rede Globo, mas para todo o audiovisual:

“Crise econômica. O audiovisual está em crise no mundo inteiro, o modelo dos streamings deu uma caída nos últimos anos. Eles chegaram há 10 anos com cara de novidade e renovação, para falar com públicos diversos. Nós tivemos ótimos produtos nessa época, como 'Orange is the New Black', por exemplo. Depois, eles tiveram uma estagnada em assinantes. Eu não acho que é porque as pessoas não gostavam do conteúdo, mas é uma crise mesmo, as pessoas não têm dinheiro para assinar todos os streamings. Então, os streamings e as emissoras não vão apostar, eles vão no que dá certo há muito tempo: séries e novelas que vão agradar toda a família, desde a avó mais conservadora até o sobrinho LGBTI+. Como roteirista, a gente vê esse tipo de demanda. Nós recebemos encomendas para séries que agradam toda a família. E infelizmente as tramas LGBTI+ são vistas como assuntos mais específicos, porque tem muita gente que rejeita esse tema num país como o nosso”, explica. 

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No caso da Rede Globo, por exemplo, esse ponto aparece na contratação de Amauri Soares, que assumiu o posto de diretor dos Estúdios Globo no lugar de Ricardo Waddington. Desde que assumiu a função, em 2023, Amauri tem sido creditado como o responsável pela guinada mais conservadora dos produtos da empresa. 

É por essas e outras que, ainda em 2023, a gente precisa comemorar os pequenos-grandes avanços, como o beijo do casal Ramiro e Kelvin, desta semana, mas sem esquecer que ainda estamos bem atrasados quando o assunto é a representação de personagens LGBTQIAP+ na TV brasileira.

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