Após anos interpretando a coadjuvante, Sandra Oh é finalmente protagonista

Depois de anos interpretando a amiga, Sandra Oh finalmente é a estrela em "Killing Eve" — ao lado de uma personagem que faria de tudo por ela, sua fã mais assustadora.

Michael Buckner / Deadline / REX / Shutterstock

Sandra Oh

Em seu primeiro papel como protagonista no cinema — no filme independente de 1994 "Os Dois Lados da Felicidade", de Mina Shum, — Sandra Oh interpretou uma aspirante a atriz de 22 anos chamada Jade Li que sonhava em conseguir um papel como Blanche DuBois ou Joana d'Arc.

No filme, Jade pratica monólogos no quarto de infância e, meio que de brincadeira, fantasia com uma amiga sobre o dia em que irá ganhar um Oscar: "Eu seria indicada por um papel bem dramático. Algo muito complexo e baseado em fatos reais. Eu não sei, algo para o qual eu teria que, tipo, ganhar uns quilos". E então ela faz um teste para um pequeno papel como garçonete e suas aspirações, ainda que não esmagadas, acabam um pouco abaladas.

O diretor de elenco orienta que ela tente dizer suas falas com um sotaque, e não gosta quando Jade começa a falar com uma caricatura de um sotaque francês — ele sabe que ela entendeu o que ele quis dizer. Depois de alguns segundos, o sorriso some de seu rosto e ela obedece a orientação, e começa a falar em um inglês hesitante da imigrante chinesa que acabou de chegar a uma nova terra que ela não é. Naquele instante, ela se depara com a realidade de que, embora ela se veja capaz de interpretar qualquer papel, inclusive o principal, as pessoas olham para ela através de um ângulo muito fechado.

Era impossível não pensar que "Os Dois Lados da Felicidade" poderia ser um marco ásio-americano perdido dos anos 90, exceto pelo fato de que, como sua protagonista, o filme era canadense. Ao ler a entrevista de Sandra Oh para Alex Jung, da Vulture, a atriz confessou que, quando leu pela primeira vez o roteiro da sua nova série da BBC America, "Killing Eve", não entendeu qual papel estavam oferecendo para ela, e perguntou a sua agente.

"Eu nem sequer percebi que seria uma das personagens centrais", disse a canadense de ascendência coreana de 46 anos. "Depois de décadas de pessoas dizendo para você ver as coisas de certa maneira, você finalmente percebe: 'Meu Deus! Eles fizeram uma lavagem cerebral em mim!'"

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BBC America

Sandra Oh em seu novo papel como a oficial do MI5, Eve Polastri, em "Killing Eve".

Era como se Oh fosse Jade naquele momento. Anos de embates com os limites da indústria haviam convencido a atriz a deixar seus sonhos de lado. Uma pessoa poderia facilmente imaginar Sandra folheando um roteiro em busca de personagens autoritários e sérios, especialistas em tecnologia, que preencheriam as cenas e lhe dariam exposição — qualquer papel, menos o da protagonista.

Oh começou a atuar quando era adolescente — você pode encontrar na internet edições raras de sua aclamada estreia, onde ela interpreta uma fugitiva viciada em drogas no filme para TV canadense de 1994 "The Diary of Evelyn Lau".

A atriz nunca foi alguém que sumia em cena, ou que se encaixava nos limites dos estereótipos que muitas atrizes asiáticas tiveram que lutar para escapar. Com seu timing preciso, o versátil rosto de uma heroína maluca e seu cabelo cacheado, ela é capaz de utilizar seu espaço da melhor maneira possível — uma presença grande demais para caber na caixa de personagens que ela de fábrica nasceu para interpretar, mas aparentemente não-convencional demais para ser considerada para o centro dos holofotes, mesmo quando tudo indica que isso já deveria ter acontecido.

Ao falar com a imprensa, Oh tende a reconhecer que, sim, existe racismo, ao mesmo tempo que tenta evitar que sua carreira seja definida por ele. "Eu trabalho muito duro para pensar assim", disse à Vulture, quando perguntada se achava que estava recebendo as ofertas adequadas depois de deixar "Grey's Anatomy" em 2014. "Pensar nisso apenas dessa forma só me causaria sofrimento."

De volta a 1995, quando "O Outro Lado da Felicidade" foi lançado nos cinemas dos EUA, ela falou ao Los Angeles Times sobre o fato de ser rotulada "A Garota da Cota", uma vez que ela era uma das poucas atrizes asiáticas dentro de um grupo majoritariamente branco: "Você fica se questionando se foi escolhida pela sua etnia ou pelo seu talento. Eu simplesmente não deixo isso me atingir, mas realmente poderia se eu deixasse. Eu decidi muito cedo que seria uma atriz. Ponto. A melhor atriz que fosse possível".

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Fine Line Features

Sandra Oh como Jade Li, em "Os Dois Lados da Felicidade", no teste para o papel de uma garçonete.

Adotar essa perspectiva em uma profissão tão dependente dos caprichos dos executivos (na maioria brancos, na maioria homens) parece um ato de autoproteção, mas poderia facilmente ser um ato de não se importar e se autopreservar ao lidar com uma indústria que claramente gostava de ter Oh por perto, mesmo que nunca parecesse muito claro o que fazer com ela por razões que vão além da raça. A aura sensata de Oh é uma de suas qualidades que as pessoas mais sentem prazer em ver em cena, mas também é o que parece colocá-la em papéis secundários. Isso não quer dizer que as personagens que ela interpreta não sejam vulneráveis, confusas ou bobas. Elas simplesmente apresentam uma base que é subestimada em cena e tende a aparecer mais em conselheiras, figuras de autoridade ou amigas solidárias, mas não em protagonistas.

Uma das razões pela qual a série "Killing Eve", que foi adaptada para a TV pela roteirista Phoebe Waller-Bridge, é tão gratificante, é que ela mostra essa qualidade e vira isso de cabeça para baixo. Nela, Oh interpreta a personagem principal, Eve Polastri, uma agente do MI5 que é boa e subutilizada em um trabalho essencialmente de escritório, até que uma das assassinas profissionais que ela passa a monitorar como hobby entra sem o menor aviso em sua vida. A série é uma combinação imprevisível e desafiadora de suspense e comédia sombria que se encaixa como uma luva (daquelas que você colocaria antes de sair para matar alguém) em Oh.

Polastri, uma pessoa confortavelmente casada e com um trabalho tedioso que vai parar em um mundo de espionagem, não está muito de acordo com as belas sulistas e santas francesas condenadas que Jade Li se imaginaria interpretando em 1994, mas é imensamente interessante em uma dimensão toda sua. Acontece que Oh não precisava esperar até que alguém finalmente a visse como Blanche DuBois para assumir um papel principal — ela só precisava que alguém a visse.

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Touchstone Pictures / Courtesy Everett Collection

Oh com Diane Lane e Giulia Steigerwalt, em Sob o Sol da Toscana, em 2003.

Sandra Oh interpretou várias professoras, muitas colegas de trabalho, algumas assistentes e umas poucas vizinhas. E, em um feito notável, em "Reencontrando a Felicidade", filme de John Cameron Mitchell de 2010, ela interpretou uma integrante de um grupo de apoio ao luto que quase tem um caso e rouba a cena de Aaron Eckhart bem embaixo de seu nariz. Personagens secundários de raça indeterminada têm se tornado o feijão com arroz de muitos atores racializados: Oh se tornou conhecida especialmente por interpretar a "melhor amiga".

Pelas minhas contas, ela interpretou a corajosa amiga de uma loira pelo menos quatro vezes: ela apareceu na porta da casa de Diane Lane em "Sob o Sol da Toscana", em 2003. Acompanhou Virginia Madsen em encontro de casais em "Sideways — Entre Umas e Outras", em 2004. Ela é uma das amigas loucas do pequeno coral para Heather Graham em "Cake — A Receita do Amor", de 2005. E, por 10 anos, ela interpretou a "amiga" de Meredith Grey’s (Ellen Pompeo) em "Grey's Anatomy" - em um papel que é muito mais rico do que os citados anteriormente, de um jeito que chega a parecer um pouco injusto, se não incorreto, colocá-los juntos.

Cristina Yang é de longe o papel que definiu a carreira de Oh até o momento, mas ele não surgiu do nada. Se você prestar atenção, pode ver alguns dos papéis anteriores de Oh flutuando através de Cristina — a solidez da amizade com Meredith é inspirada por seu papel em "Sob o Sol da Toscana"; ou a dureza ferida de Yang, a mesma que aparece em "Sideways — Entre Umas e Outras", quando sua personagem dá a maior surra em Thomas Haden Church com seu capacete de moto, depois de saber que ele esteve mentindo pra ela - uma sequência que é encenada como uma palhaçada brutal, mas que ainda consegue destacar a dolorosa traição no rosto dela. Cristina Yang é o que acontece quando uma personagem nasce como uma "amiga", mas é preenchida por uma atriz que tem repertório para dar complexidade a um personagem, uma pessoa complexa em sua própria história.

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Fox Searchlight / Courtesy Everett Collection

Oh e Thomas Haden Church, em Sideways - Entre Umas e Outras, 2004.

Seja como for, Oh particularmente faz um trabalho incrível dividindo a tela com outras mulheres. Seus principais relacionamentos em tela acontecem sobretudo com mulheres, não necessariamente com um subtexto homossexual — embora ela tenha interpretado lésbicas em "Tammy: Fora de Controle" e em "Sob o Sol da Toscana": relacionamentos românticos que existem ao lado dos platônicos devido ao foco principal. Ela é particularmente uma competente intérprete da amizade feminina, em toda a sua intimidade e complicações, mesmo que isso signifique que ela esteja ali para enriquecer os dramas do personagem principal. É por isso que ela esteve no coração de uma das melhores e mais extensas explorações da amizade feminina em anos recentes — a saga épica de Meredith e Cristina em "Grey's Anatomy", uma dupla que conseguiu se tornar mais central para a série do que qualquer um dos pares românticos sonsos apresentados durante uma década de permanência de Oh no programa.

Cristina e Meredith imediatamente viram que tinham algo em comum durante seus primeiros dias como residentes — um senso de humor irônico, um lado sombrio e talento — e se deram tão bem sem nenhum esforço que parece nunca ter existido um ponto de inicio da amizade delas. Era simplesmente um relacionamento invejável, mas nunca simples, que se revelou ao mesmo tempo que a atormentada história de amor de Meredith com McDreamy (Patrick Dempsey) e a igualmente complicada relação de Cristina com Burke (Isaiah Washington).

Cristina e Meredith eram almas gêmeas, as Irmãs Perturbadas, mas elas também eram uma análise sutil de duas mulheres que faziam escolhas diferentes com respeito a como queriam equilibrar suas carreiras e suas vidas pessoais. E a divergência entre elas por fim causou uma briga feia na décima e última temporada de Oh, quando Cristina diz a Meredith que a superou como cirurgiã porque Meredith "diminuiu o passo" profissionalmente para se devotar à maternidade.

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Ron Tom / Getty Images; Eric McCandless / ABC via Getty Images

Oh e Ellen Pompeo como as médicas Yang e Grey, em Grey's Anatomy.

Cristina foi uma personagem bem escrita — revolucionária até — mas a atuação de Oh é que a tornou tão vibrante. Ela interpretou a personagem de modo muito cordial mas nunca fraco — uma força mordaz e brilhante frequentemente chamada de "robô" e uma "máquina", mas que estava longe de ser insensível. Em vez disso, ela foi assumidamente ambiciosa, alguém para quem a cirurgia era uma vocação passional. Alguém que vivia e respirava trabalho, o que não a tornou desumana ou sem vontade. Oh conduziu Cristina livre do modelo das minorias e das associações frias de mulheres de carreira, apoiada na sua confiança, seu pragmatismo e sua motivação, com uma segurança fácil, normalmente disponível apenas para os homens.

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Dark Sky Films

Oh e Anne Heche, em Catfight, 2016.

Dois anos depois de Oh deixar "Grey's Anatomy", ela estrelou em 2016 junto com Anne Heche "Catfight", filme indie do diretor Onur Tukel sobre duas "ex-inamigas" da faculdade que seguem se encontrando pela vida; velhos ressentimentos e raiva reprimida surgem até que elas se envolvem em uma violenta briga ridícula que deixa primeiro uma e depois a outra em um coma de dois anos. Um filme que é sobretudo uma curiosidade engraçada e estranha na carreira das duas, mas para Oh tem a repercussão adicional de parecer uma resposta para os papéis em que ela era selecionada como a amiga. Neste filme, em vez de oferecer a sua coprotagonista loira consolo e um ombro para chorar, ela a rebaixa, a insulta e então acaba golpeando o rosto dela no chão repetidamente — a amiga solidária, nunca mais.

Oh foi franca sobre sua frustração com o fato de poucas propostas aparecem para ela depois que saiu da série, contando à Vanity Fair que a calmaria era "angustiante". Mas uma das coisas notáveis sobre "Killing Eve", quando a série finalmente rolou, é que ela se parece — assim como em "Catfight" — com uma reação a todo aquele tempo gasto interpretando a boa amiga e um lugar onde Oh poderia ser mais sombria e mais desagradável.

Em "Killing Eve", ela é novamente par de uma loira bonita, só que em vez de acabar em um abraço carinhoso, nunca há a certeza se a dupla irá se matar, ferrar uma com a outra ou alguma combinação das duas coisas; o stress entre elas é muito tenso e intangível. Villanelle (Jodie Comer) é uma sociopata, além de um assassina de aluguel espantosamente divertida, uma mulher com gosto para roupas de grife, Paris, amantes de qualquer gênero, carnificina impulsiva e por traumatizar crianças. Ela é o material dos suspenses extravagantes, metida até o pescoço em intrigas — o tipo de personagem a qual a história irá servir.

E Eve, por natureza, não é. "Killing Eve" começa com uma breve tomada de Oh acordando, gritando na cama — não, os gritos não foram causados por sonhos traumáticos, mas porque ela dormiu em cima do próprio braço depois de ir para a cama bêbada. Eve, vestindo uma jaqueta multifuncional e de ressaca da festa de karaokê do escritório, trabalha para o MI5 em uma rotina bastante trivial. Seu profundo interesse em assassinas femininas vem a calhar, mas começa menos como algo relacionado ao trabalho e mais como um passatempo, com um cheiro de admiração pelo crime.

Quando ela e Villanelle se cruzam pela primeira vez, foi como se dois gêneros estivessem se esmagando um contra o outro — suspense itinerante e comédia dramática no local de trabalho. Villanelle se dirige a um hospital para matar uma testemunha com custódia especial e Eve está lá para interrogar esta mesma pessoa. Quando Eve solta seu cabelo, as duas compartilham no banheiro um momento quase inocente juntas.

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Bbc America

Villanelle (Jodie Comer) e Eve (Oh), em Killing Eve.

Personagens como Eve supostamente ficariam obcecadas por personagens como Villanelle, estes anti-heróis carismáticos que, ultimamente, vemos aos montes nas telas. O fato de Villanelle, com seu jeito cruel e sádico, se tornar tão fascinada por Eve é a maior e mais agradável surpresa inicial da série e um sinal que ela não seguirá padrões previsíveis.

Villanelle funciona como um tipo oposto do humilhante diretor de elenco de "Os Dois Lados da Felicidade". Ela é uma incentivadora psicótica do potencial de Eve em cena que presenteia a mulher mais velha com uma mala cheia de roupas bonitas e mata um colega que ela acha que está atrapalhando Eve.

É como se, depois de anos sendo subvalorizada, Oh fosse selecionada para um papel ao lado de uma personagem que tem a intenção de fazer de tudo por ela, se tornando sua fã mais assustadora. Comer chega a ser ultrajante de boa, mas Oh mais do que a acompanha. Ela é o coração da série, pela força de seu realismo envolvente, uma mulher fazendo um curso intensivo de como ser uma espiã honesta - o que às vezes significa depilar as axilas às pressas sobre uma pia de hotel, a fim de usar um vestido sem mangas para flertar com uma fonte.

Há algo emocionante em ver Oh, com seu traje casual e seu cabelo em um coque, no centro de "Killing Eve", que já foi renovada para uma segunda temporada. Eve é engraçada e boba, ansiosa e intensa, detentora de muitas das qualidades que fizeram Oh brilhar em papéis coadjuvantes anteriores, que não foram postas de lado agora que ela foi promovida a protagonista, porém aperfeiçoada — uma personagem agradavelmente não romântica, que caiu em uma conspiração sinistra, não por brincadeira, mas como o alvo.

Não que Eve seja um papel rico - embora seja, mas o papel é uma expansão da imaginação do que a personagem representa, a promessa de que escritores, diretores e produtores podem encontrar um lugar para uma atriz como Oh, não apenas como coadjuvante, mas no coração da história. Nunca houve qualquer dúvida de que Oh poderia prender a atenção assim que tivesse a chance de ser protagonista e de que o público iria estar lá para vê-la. O que mudou é que há pessoas dispostas a dar a ela essa oportunidade e papéis que não são escritos para uma ideia ultrapassada e mais fechada de como uma protagonista deve ser. Jade Li, em "Os Dois Lados da Felicidade", pode nunca ter sonhado com uma personagem como Eve, mas isso é parte de seu encanto. Ela não é um arquétipo de heroína — ela é algo novo. ●

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A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Juliana Kataoka.

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