Apanhar até virar homem

"Apanhei um bocado na vida. E isso não fez de mim mais homem. Só me fez mais orgulhoso de ser gay."

“Eu espero que você apanhe até virar homem.” Mais do que me deixar triste, por ter sido dita por um parente que morava comigo, essa frase me deixou confuso. Eu já era homem e, aos 13 anos de idade, sabia muito bem disso. Desde que me entendia por gente eu me entendia por homem. Porque era lembrado que era homem o tempo todo. A vida para um homem numa cidade do interior de São Paulo era diferente. Mais fácil. Eu podia andar sozinho pelas ruas desde sempre --afinal, era homem. Podia passar a tarde com meus amigos na praça --afinal, era homem. Podia beber e acordar vomitado no chão do banheiro aos 14 anos sem ser punido por isso --afinal, era homem.

Mas foi no dia em que um parente descobriu que eu era gay que eu descobri que ser gay ameaçava o meu posto de homem. Que algumas pessoas —às vezes pessoas bem próximas— podiam achar que eu não era homem.

Me descobri gay anos antes desse confronto. Estava na casa de uma das melhores amigas da minha mãe. Ela era a única pessoa rica que eu conhecia no meu mundo de classe média média. Ela tinha seis carros, não só um carro velho, como a minha família. Ela tinha uma piscina. E uma quadra de tênis. E uma casa que era tão grande que era possível ouvir o silêncio enquanto um churrasco rolava na piscina, se você atravessasse o terreno e fosse para o outro lado da mansão.

E eu fui para o outro lado da mansão, que acabava na sala da TV. A sala era literalmente da televisão, porque era o aparelho de tubo que ocupava a maior parte do cômodo. E lá estava um dos filhos da dona da casa. O menino, uns cinco anos mais velho que eu, estava estirado no sofá e olhava pra televisão gigante. Eu olhava para o menino que olhava pra televisão gigante. De pé, atônito, com a boca aberta. E ele parecia não perceber —ou não se importar. E eu passei um churrasco de domingo inteiro olhando fixamente para aquele menino. E saí de lá na Belina azul-petróleo da minha família mudado. Aquele menino (e outros tantos meninos depois dele) exercia sobre mim um poder que televisão nenhuma jamais exerceria. Mais uma camada da cebola identitária que eu era, e que aos poucos descobria. Foi ali que eu percebi que era gay, e não tinha nada que pudesse fazer a respeito --nem que eu quisesse fazer a respeito, pra falar a verdade.

Daí para frente, várias outras pessoas vieram me avisar que eu era gay, e precisava mudar. Geralmente, aos gritos. Meus amigos de colégio me defendiam quando alguém me chamava de viadinho: “Não, ele é só esquisito.” E eu aceitava ser esquisito. Era o menino que usava colete ortopédico. Que ia, por vontade própria, imitar um orangotango na frente da classe, entre uma aula e outra. Tentei ser o mais engraçado o possível para ser o menos sexualizado o possível no ensino médio. E funcionou. Qualquer coisa era melhor do que gay. Então eu me agarrei na possibilidade de passar em uma faculdade pública e me mudar pra capital. E meu plano deu certo.

Aos 17 anos, vim para São Paulo e passei por uma transformação instantânea, que nem aquelas que os programas ruins de moda fazem nos participantes: eles entram eles mesmos e saem uma versão genérica do que os apresentadores acham que eles deveriam ser. Eu virei uma versão genérica do que eu achava que um homem gay tinha que ser. Era tudo ao mesmo tempo: moicano descolorido, alargador na orelha, calça tão justa que deixava a pele marcada quando a tirava no fim do dia. E eu fui bem feliz, até ir tirando camada por camada dessa cebola, e descobrir do que eu gostava de fato, e ir deixando para trás o resto. Fui aprendendo o que fazer com essa tal liberdade, até chegar à forma dela que mais me representa.

A essa altura, parecia que o pior havia passado. Mas o pior parece nunca passar. Uma das primeiras entrevistas de emprego que fiz foi na redação de um grande jornal. O editor estava atrás de alguém jovem, despachado e com sangue nos olhos. Eu era jovem, despachado e tinha um coração batendo dentro de cada olho. Ofereci para o editor um furo de reportagem sobre um cassino ilegal no bairro mais rico da cidade. E uma matéria sobre uma oficina de costura de uma grife onde imigrantes trabalhavam em regime análogo à escravidão. O editor ouviu, balançou a cabeça e respondeu: “Legal, mas sabe o que é? A gente já tem um repórter que cobre chantilly”. Chantilly, no jargão que ele usava, eram as matérias mais leves, cujo valor de mercado também costuma ser mais leve do que o do noticiário de política ou de esporte, por exemplo. Eu tinha oferecido matérias sérias, mas ele olhou para mim e viu chantilly. O outro repórter da equipe dele era gay.

Dois anos depois, eu fui contratado por outro jornal. E outro moleque de 20 e poucos anos foi contratado comigo, o Diogo. E trabalhamos juntos por ano. O Diogo se tornou o melhor correspondente de guerra que eu conheci. Ele foi detido no Líbano pela facção xiita Hezbollah e desviou de balas no Egito durante a Primavera Árabe. E era gay também, mas isso é só um detalhe. Dançou comigo na pista d’A Loca e entrou em arranca-rabos homéricos comigo por causa de RuPaul’s Drag Race. E virou meu modelo de vida profissional. Até então, eu não tinha modelos de vida profissional. Isso não é só um detalhe.

Desde que eu fui visto como chantilly, abracei o quanto ser LGBTQ está em tudo o que eu faço. Está aqui, neste texto. E percebi que isso é meu megahair de Sansão, não meu calcanhar de Aquiles. E, respondendo à frase que ouvi aos 13 anos: eu apanhei um bocado na vida. E isso não fez de mim mais homem. Só me fez mais orgulhoso de ser gay.

O autor Chico Felitti:

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Junho é o Mês do Orgulho LGBTI+ e para celebrar nós convidamos quatro escritora/es para repartir relatos inspiradores de aceitação própria. Leia também os relatos de Amara Moira, Carol Bensimon e Taís Bravo. Veja também todos os posts do BuzzFeed Brasil sobre o tema aqui.


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