Como a comunidade negra transformou o Air Force One em um dos tênis mais populares do mundo

Calçado passou anos restrito aos comércios de periferia antes de virar ícone da moda.

Durante os mais de 300 anos da escravidão negra nas Américas, os escravizados tinham de andar descalços. Não existia nenhuma lei proibindo o uso de sapatos pelos negros, mas esse era um hábito comum da época que deixava ainda mais evidente sua condição de escravizado.

Ao serem “libertados”, muitos negros economizavam o pouco que tinham para comprar sapatos, na busca de resgatar um pouco da dignidade que lhes foi tirada pelos brancos. Quem não se acostumava e desenvolvia bolhas nos pés chegava a andar com os sapatos pendurados nos ombros, amarrados um no outro pelos cadarços.

Nos anos 1980, a comunidade negra norte-americana deu um novo significado aos tênis. Com o lançamento dos Air Jordan, se criou uma cultura que elevou as peças esportivas/utilitárias ao status de peças de moda. Peças que compunham um visual e tinham um significado.

O primeiro modelo do Air Force One. Via Nike

No início dessa mesma década, a criação do designer Bruce Kilgore ganhou vida: os tênis Air Force One, lançados apenas em sua versão em cano alto, na cor branca/cinza. No ano seguinte, em 1983, foram lançados os modelos em cano baixo.

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O histórico do Air Force One é de pouquíssimo investimento em seu marketing, exceto na campanha inicial, estrelada pelos jogadores da NBA Moses Malone, Mychal Thompson e outros.

Propaganda de 1982, estrelando astros da NBA. Via Nike

Por muitos anos, o tênis não fez parte do catálogo oficial da Nike. Era distribuído apenas para lojas de áreas periféricas e tinha o público negro como o seu maior consumidor.

E, como tudo o que a comunidade negra adota em larga escala, acabou se tornando moda. A cultura Hip Hop abraçou o modelo como uma de suas peças mais icônicas. Várias cores eram usadas, mas o Air Force One branco - inteiro branco - alcançou a posição número 1 na preferência visual das negras e negros dos EUA dos anos 1990.

No Brasil do século XX, o malandro dos morros costumava andar em ternos brancos e calças afuniladas. O branco precisava estar sempre impecável, porque demonstrava o cuidado, o capricho e, também, a força desse indivíduo negro.

Getty Images

Pode soar estranho o uso da palavra “força”, mas é literalmente isso. Em tempos de chão de terra, ternos impecavelmente brancos mostravam que esses malandros não tinham caído no chão no meio de uma roda de capoeira ou briga. 

Para os Air Force One brancos, vale a mesma lógica. A demonstração da própria dignidade em tênis sempre limpos e bem-cuidados. Literal ou metaforicamente, também mostra que ninguém pisou em seu pé.

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“For all my niggas with the all-white Air Force Ones and black guns” foi o que Jay-Z disse na canção “Can I Live II”, gravada em 1996.

Air Force One em edição especial da Roc-A-Fella, gravadora fundada por Jay-Z. Via Nike

Em 2002, no auge de sua popularidade, Nelly lança a música “Air Force Ones”, que virou um hino para os amantes dos tênis. No aniversário da peça em 2007, a reunião histórica de KRS-One, Rakim, Kanye West, Nas e DJ Premier resultou no lançamento da música “Classic”, que fala sobre o icônico calçado. 

Na Inglaterra, os modelos inteiramente pretos e inteiramente brancos foram muito populares no emergir da cena Grime, nos anos 2000. No Brasil, a cultura Hip Hop também abraçou como um item importante no mesmo período, e continua sendo até hoje. Seja no pé de Travis Scott, A$AP Rocky ou Mano Brown.

É impossível contar quantas referências já foram feitas ao Air Force One na cultura popular. Do Gangsta ao Rap mais politizado, das periferias para o TikTok de patrícias descoladas. O Nike Air Force One se tornou um dos calçados mais vendidos de todos os tempos e com um peso histórico enorme no mundo da moda.

Texto de Jun Alcantara.

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