Após 40 anos, ainda é preciso falar sobre HIV/Aids

Uma reflexão sobre a epidemia, os estigmas, a falta de informação e suas intersecções com o movimento LGBTQIA+.

No mês de junho celebramos no mundo todo a existência e resistência de corpes LGBTQIA+, e embora a comunidade seja conhecida por nossa alegre manifestação da vida com nossas cores e valores, não é possível jamais omitir nossa luta centenária por direitos humanos que ganhou potência no início dos anos 80.

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Enquanto o Brasil emergia do chorume tóxico da ditadura militar e renascia com a democracia, uma doença misteriosa se espalhava na sociedade e, silenciosamente, começava a dizimar a população (majoritariamente homens que fazem sexo com homens, de classe média alta e corpes dissidentes e marginalizades). Mas a doença também se impregnava nas famílias cis-heterossexuais ditas “tradicionais”, e matava mulheres e crianças. Ela se chama Aids e ataca impunemente o sistema imunológico através do vírus HIV, matando em poucos meses casais, grupos de amigos e famílias inteiras.

No início dos anos 90, no exato momento em que a comunidade LGBTQIA+ começa a ter diversos avanços e conquistas no campo dos direitos civis, voltamos novamente ao centro da vulnerabilidade social, pois uma nova doença não somente nos mata, como nos estigmatiza e nos coloca ainda mais suscetíveis a discriminações e violências.

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Infelizmente, ainda hoje o preconceito e a falta de informação continuam sendo os maiores desafios da epidemia de Aids - mesmo que por outro lado a ciência tenha avançado muito e o tratamento antiretroviral proporcione uma vida saudável e longeva a qualquer pessoa que vive com o vírus. “Faz 40 anos do surgimento da Aids no mundo e ainda precisamos chamar atenção para o estigma e a discriminação. É preciso falar mais sobre sexualidade, romper tabus e preconceitos”, afirma a fundadora da Agência de Notícias da Aids Roseli Tardelli.

Na imagem, selos em várias línguas lançados pela ONU na década de 1990 com a finalidade de chamar a atenção para a causa.

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Em 2021, pela primeira vez em 26 anos, a doença ganhou destaque na Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo e foi escolhida como tema do evento. Um motivo de orgulho para todo o diverso movimento de HIV/Aids, integrado pelas mais variadas pessoas, que vivem ou convivem com o vírus e que estão igualmente e singularmente engajadas com o objetivo de desconstruir o estigma com informação e afeto.

Mais do que isso, somos uma rede de acolhimento e orientação para populações vulneráveis como mães solo, mulheres trans, pretas, LGBTQIA+, vítimas de violência sexual, idosos e, desde o início da pandemia de coronavírus, pessoas em situação de fome. Nós, pessoas com sorologia positiva para HIV, vivemos uma epidemia dentro de uma pandemia. “A epidemia do HIV não é só de saúde, mas social, porque o estigma faz com que as pessoas não se testem, não se protejam, não busquem outras formas de proteção além da camisinha, como os métodos preventivos combinados ou até de profilaxia pré ou pós exposição, a PrEP e a PEP", aponta Alberto Pereira Júnior, ator e apresentador do programa Trace Trends do GloboPlay e um dos apresentadores da Parada SP deste ano.

Foto: Rony Hernandes

Alberto Pereira Júnior, um dos apresentadores da Parada SP 2021.

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Desde o início da epidemia, a Aids já matou mais de 290 mil brasileires e 35 milhões de pessoas no mundo inteiro. Entretanto, viver com HIV hoje em dia é como conviver com qualquer doença crônica que se tem que tratar constantemente. Com dois comprimidos por dia, às vezes um único, as quase 1 milhão de pessoas que vivem com HIV no Brasil podem ter uma vida como qualquer outro cidadão negativo para a sorologia.

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É tranquilo. É favorável. Mas é uma chatice (sem falar dos efeitos colaterais)! Melhor mesmo seria não ter que depender de um remédio para sobreviver! Mas já que não temos outra opção, viva o SUS! Afinal, é o Sistema Único de Saúde que nos oferece gratuitamente a medicação, e cujo Programa de HIV/Aids (sucatizado e rebaixado logo no início do governo Bolsonaro) foi referência mundial no combate às mortes por Aids e ao acesso universal ao tratamento do HIV.

Na imagem, passeata no Dia Mundial de Combate à Aids realizada em São Paulo, 2017.

Mesmo sendo gratuito, apenas  77% das pessoas que vivem com HIV no Brasil fazem o tratamento. Isso acontece, na grande maioria dos casos, por conta de questões sócio-econômicas, que podem ser melhor traduzidas como estigma e pobreza.

Não à toa, a Agência Aids arrecadou, durante o mês de junho, cerca de três toneladas de comida que foram distribuídas às PVHIV (como chamamos as pessoas que vivem com HIV) através do trabalho colaborativo com ONGS regionais espalhadas pelo território brasileiro.

“A Aids não é apenas uma questão da comunidade LGBTQIA+, mas da saúde pública e de todos”, afirma Alberto Pereira Júnior. Enfatiza, no entanto, que “a infecção por HIV tem vários recortes de vulnerabilidade que recaem mais sobre a população preta que, devido ao racismo estrutural, muitas vezes não tem acesso ao tratamento antirretroviral ou ao sistema de saúde como um todo”.

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Portanto, a presença de pessoas vivendo com HIV no espectro político se faz necessária. A eleição de Carolina Iara em 2020, co-vereadora pela Bancada Feminista do PSOL, é um fato histórico: ela é a única política brasileire que vive abertamente sua sorologia positiva para HIV.

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Intersexo, travesti e ex-profissional do sexo, ela acredita que sua presença na Câmara Municipal de São Paulo é uma maneira de “romper o paradigma dos marcadores sociais de uma existência marginalizada, rompendo o silêncio e a clandestinidade e colocando no debate público e na arena política” as questões das populações vivendo com HIV, trans e travestis.

Na imagem, a co-vereadora Carolina Iara.

Violência contra mulheres trans e cis no sistema de saúde.

Carolina Iara, que foi vítima de um atentado transfóbico em janeiro de 2021, faz questão de ressaltar que “a transfobia aumenta o estigma da Aids, fazendo com que pessoas tenham medo de procurar os sistemas de saúde” e sofrerem algum tipo de violência durante o atendimento médico. Além disso, as populações trans têm maior exposição ao HIV por conta da prostituição e da pobreza, “já que é comum o não uso do preservativo para se obter mais dinheiro com um programa”.

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Quando se trata da população trans, não obstante a marginalização e discriminação, Carolina Iara aponta que “ainda temos uma lacuna de informações sobre a intersecção de HIV e essa população.

Não se sabe em exato quais são as interações medicamentosas dos antiretrovirais com as hormonizações e o silicone industrial”, exemplifica com algumas das questões específicas dessa comunidade. Sim, a medicina e a ciência ainda são feitas por e para homens cis, brancos heterossexuais. Então, o movimento de HIV/Aids tem que estar constantemente exigindo que mulheres cis e trans também tenham suas necessidades e pautas atendidas pela indústria farmacêutica, políticas públicas, aparatos de saúde e pesquisa científica.

Por este motivo, no caso das pesquisas de HIV/Aids, até recentemente a maioria dos estudos utilizava como quesito de exclusão mulheres em idade reprodutiva, isso é, praticamente todas as mulheres cis com vida sexual ativa. Não é por acaso que a ciência ainda não tenha informações empíricas sobre nossos corpes e os remédios para HIV, não é mesmo?

Em conversa com o infectologista Dr. Ricardo Diaz, que coordena um dos principais estudos da atualidade sobre HIV/Aids na Unifesp, ele me contou que quando observou os níveis de medicamento no sangue percebeu que são sempre mais altos nas mulheres: cerca de 27% a mais para o Dolutegravir (o mesmíssimo que eu uso) de acordo com o indicador chamado AUC, ou área sob a curva, que mede a concentração versus o tempo.

Direto das Ruas / Reprodução

Isso significa que o tratamento padrão oferecido pelo SUS à toda população tem uma posologia que pode ser tóxica para as mulheres cis, mas não temos outra opção senão tomar a dose que nos metem goela abaixo e arcar com todos os efeitos colaterais das drogas. Entre eles, a deformação do corpo por causa da lipodistrofia (perda de massa muscular que ocorre principalmente no rosto e nádegas), depressão, problemas ósseos, cardiopatias, hipertensão e aumento do nível de colesterol e triglicérides, aumentando as chances do desenvolvimento de comorbidades não associadas com o HIV.

“27% é muita coisa! E ninguém fala, por exemplo, em individualizar o tratamento da mulher, em ajustar a medicação. Já falava Paracelso: a dose faz o veneno", conclui em referência ao médico do século XVI considerado o pai da toxicologia.

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Para as mulheres cis, a violência estrutural do sistema de saúde também é uma vivência diária nos 26 estados da federação. Como consequência, costuma intervir no objetivo global da Unaids de zerar a taxa de transmissão vertical do HIV - de mãe para bebê - que já acontece em diversos países pelo mundo. Cuba foi o primeiro a atingir a meta devido aos protocolos de humanização no atendimento de mulheres vivendo com HIV em maternidades.

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Vanessa Campos, ativista e coordenadora da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV (RNP-AM) no Amazonas, conta que recebe cotidianamente relatos de mulheres brasileiras que são discriminadas durante todo o processo de pré-natal e, principalmente, violentadas durante o parto. Ela conta que no final de 2020, uma mulher de Palmas (TO) a procurou para contar que durante o trabalho de parto foi isolada dentro do hospital e impedida de usar o banheiro durante 24 horas para não compartilhá-lo com mulheres negativas para o HIV.

Vale lembrar que a discriminação de pessoas que vivem com HIV é crime desde 2014, quando a Lei 12.984 foi sancionada pela presidenta Dilma Roussef e classificou como passível de punição penal condutas como a recusa de inscrição em escola, negar emprego ou trabalho, demitir, segregar no ambiente escolar ou de trabalho, divulgar a condição de pessoa com HIV com intuito de ofender e recusar tratamento de saúde. “Falta atendimento sem julgamento moral das mulheres que vivem com HIV”, conclui.

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Vanessa Campos, coordenadora da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV no Amazonas.

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Sorofobia e homofobia nas ruas.

Órion Lalli

Do laboratório para o consultório médico, para a família, para o mercado de trabalho, para as galerias de arte, para a rua. A violência contra pessoas que vivem com HIV segue pleníssima e tem nome: sorofobia. Ela está quase sempre vinculada à LGBTQIA+fobia, como foi no caso do artista Órion Lalli. Em março de 2020, ao participar da exposição "Todxs xs santxs - renomeado - #eunãosoudespesa", que estava em cartaz no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica no Rio de Janeiro, Órion teve sua obra censurada.

A decisão judicial aconteceu após denúncia na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância feita pelo deputado estadual Márcio Gualberto e a deputada federal Chris Tonietto, ambos do PSL. A justificativa é de que a obra (foto acima) representa vilipêndio ao sentimento religioso por conter a imagem da Virgem Maria representada por uma mulher trans e com os escritos "Deus acima de tudo, gozando acima de todos". Desde então, Órion vem sendo perseguido digital e fisicamente e, devido a ameaças à sua vida, atualmente está sob custódia da OAB.

A violência contra pessoas LGBTQIA+ encontra no Brasil um dos terrenos mais favoráveis para a disseminação. Enquanto dançamos e extravasamos nossas existências com empoderamento, conquistas políticas e sócio-econômicas, skincare, lookinho bapho e a raba na pista, sempre há um amigue ou conhecido sendo agredido - e eventualmente assassinado - por homofóbicos das mais finas estirpes, como cristãos, atletas, universitários, executivos e pais de família.

Somos muitos os que vivemos com HIV, mas somos poucos os que falamos abertamente sobre isso. Não se trata de um ato de coragem, como muitos nos dizem, mas uma maneira de sobreviver. É preciso impedir a discriminação e gritar quando for preciso, enfrentar a moral hipócrita, o obscurantismo do governo atual, o falso cristianismo, mesquinho e preconceituoso. Mas também temos o direito constitucional e humano da privacidade. O silêncio pode ser aliado, mas não podemos deixar que ele nos cale!

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Para o ativista David Oliveira (foto), que também vive com HIV, o silêncio não foi uma opção. Logo após sofrer um ataque homofóbico em pleno junho festivo, a poucas quadras de casa, David foi às suas mídias sociais relatar o crime e alertar que a luta pelo nosso direito de existir continua.

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“Mesmo querendo ficar calado por causa de segurança, minha rede de apoio me fortaleceu muito e eu vi necessidade de falar sobre minha experiência. Esse lance da culpa, esse peso que a sociedade coloca na gente acaba refletindo na maneira da gente ser como a gente é. Medo de andar, medo de viver, de estudar, de simplesmente existir”, reflete.

Ele conta que estava no ponto de ônibus quando foi atacado com socos e chutes por quatro homens que gritavam ofensas homofóbicas e racistas. “Eu não estava fazendo nada. O quão perigoso é pra gente existir? Nossa existência incomoda!”

Atualmente existe uma discussão dentro do movimento de HIV/Aids de que já não é mais “good vibes” se referir ao ativismo de HIV como “luta contra a Aids”. Afinal, a metáfora militar não faz mais jus ao momento da epidemia em 2021 já que todos, supostamente, temos acesso ao medicamento e podemos sonhar com nossa velhice.

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No entanto, a realidade se despe diante dos olhos dos mais observadores que conseguem furar a bolha do privilégio: o HIV atinge a todos, mas a Aids é certeira e ataca metodicamente os mesmos corpos marginalizados, pobres e pretos. A Aids é uma tecnologia da necropolítica, e é por isso que a luta segue viva, segue forte. Resistiremos!

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Marina Vergueiro é jornalista e poeta. Em 2020 lançou "Exposta", seu primeiro livro autoral. Marina vive com HIV/Aids desde 2012. Siga @marina_vergueiro no Instagram.

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