10 atitudes machistas que eu descobri vivendo como homem trans

Ao longo da transição, é preciso desconstruir o modelo que vemos por aí e abraçar a oportunidade que a transexualidade nos dá de construirmos um novo ser humano.

Eu sou Leo Moreira Sá, iluminador, jornalista e considerado o primeiro ator trans homem da dramaturgia brasileira. Quando entrei para a universidade, lá nos anos 80, eu tive a oportunidade de participar do movimento feminista. À época, eu sabia que não pertencia a um mundo regido por homens héteros e cisgêneros, mas também não entendia o meu desconforto em estar numa luta protagonizada por mulheres.

Hoje, percebo que estar ali garantiu a desconstrução do machismo no meu processo de identificação como homem trans e por isso resolvi dividir o que aprendi nesta lista.

1. No início da minha transição, demorei um pouco pra me reconectar com a minha identidade perdida e por vezes forcei certos trejeitos de macho tosco.

O maior perigo para nós homens trans ao assumirmos nossa identidade é a facilidade com que se acaba incorporando o estereótipo do homem machista. Ao longo da transição, é preciso desconstruir o modelo que vemos por aí e abraçar a oportunidade que a transexualidade nos dá de construirmos um novo ser humano. Eu mesmo, no início da minha transição, demorei um pouco pra me reconectar com a minha identidade perdida e por vezes forcei certos trejeitos de macho tosco. Acho que eu queria ser notado pelas mulheres e ganhar o respeito dos outros homens. Ainda bem que não demorou muito pra eu cair na real e suavizar minha "performance". É uma contradição inaceitável reproduzir um modelo de comportamento opressor que nos violentou desde o nascimento.

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2. Confesso que fiquei seduzido pelo poder do status cis, principalmente porque era uma situação que me permitia ficar em paz e viver a vida sem ser violentado.

Quando fiz a mamoplastia masculinizadora, também conhecida como "retirada dos seios", e a barba cobriu meu rosto com o uso da testosterona, minha identidade corpórea passou a ser lida pela sociedade como a de um homem cisgênero. Como num passe de mágica, houve uma mudança radical na forma com que as pessoas me tratavam e pude notar no olhar dos homens cis uma espécie de amor e solidariedade que eu não havia vivenciado ainda. Cada palavra minha era ouvida e respeitada e eu entendi, enfim, o que significava ser detentor do poder numa sociedade patriarcal.

Confesso que a princípio fiquei seduzido pelo poder do status cis, principalmente porque era uma situação que me permitia ficar em paz e viver a vida sem ser violentado. Mas em 2013, quando participei do programa da Rede Globo "Na Moral", minha falsa paz acabou. No dia seguinte notei a mudança no olhar de alguns homens cis que treinavam na mesma academia que eu. Aquele olhar cheio de amor havia se transformado em repulsa e decepção. Era como se eu tivesse enganado todos eles e pude ouvir quando passei próximo de uma roda de conversa: "Não é homem, é mulher!"

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3. Nós também sofremos opressão por termos corpos designados ao nascer como "de mulher".

Eu acredito que homens trans deveriam estar sempre alinhados com a luta feminista porque também sofremos opressão por termos corpos designados ao nascer como "de mulher". Mas, infelizmente, somos muitas vezes estigmatizados por algumas feministas que nos consideram traidores da causa por "assumirmos a identidade do opressor" ou por sermos "mulheres seduzidas pelo patriarcado".

Mas é importante dizer tanto aos homens trans como às mulheres feministas, que esse contato me sensibilizou na percepção da opressão da sociedade patriarcal e me ajudou a me desconstruir durante a definição da minha verdadeira identidade de homem trans.

4. Há pouco tempo, eu precisei me mudar da chácara onde morava porque o caseiro “descobriu” que eu sou trans.

Muitas vezes os homens trans escondem sua identidade por medo de um mundo machista e violento. Há notícias de homens trans violentados e até assassinados depois que sua transexualidade foi descoberta. Há pouco tempo, eu precisei me mudar da chácara onde morava porque o caseiro “descobriu” que eu sou trans. A verdade é que eu nunca tinha conversado sobre isso com ele porque sabia de antemão que ele não tinha elementos para me compreender. Ele já tinha feito comentários transfóbicos quando a novela “A Força do Querer” tratava da transexualidade do personagem Ivan.

Acho que ele me viu dando uma entrevista e, como resultado, começou a gritar ameaças dizendo que eu era o “demônio” e que eu precisava "sentar num pau de prego”, entre outras agressões verbais. Eu tive que me mudar às pressas para outra chácara com medo de que ele atentasse contra a minha vida. A ironia é que ele era bem gentil quando achava que eu era um homem cis gay.

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5. Nós homens trans ainda sofremos com a visão de que convivemos com o sentimento de castração, de vazio, de impotência.

Na nossa cultura, seres humanos que nascem com pênis são chamados de "homens" e os que nascem com vagina são chamados de "mulheres". Então a ausência de um desses órgãos põe em dúvida sua identidade, especialmente no caso dos homens trans vivendo numa sociedade obcecada pelo pênis como símbolo máximo de poder. Nós homens trans ainda somos vistos como "mulheres que querem ser homens" e sofremos com a visão de que convivemos com o sentimento de castração, de vazio, de impotência. Muitas vezes, ao descobrirem que sou trans, algumas pessoas deixam de me tratar no masculino como faziam para usar o pronome "ela".

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6. Já tive minha masculinidade questionada por mulheres quando disse que não queria simplesmente "ficar" com elas.

Ao assumir minha identidade de homem trans, comecei a ser cobrado quando tinha atitudes ou comportamentos que são atribuídos às mulheres. Sou um cara romântico e sempre curti me relacionar afetivamente em vez de simplesmente "ficar". Esse comportamento é atribuído às mulheres, em oposição ao racional e instintivo "macho pegador". Inclusive já tive minha masculinidade questionada por mulheres quando disse que não queria simplesmente "ficar" com elas.

7. Fui repreendido e senti o peso do julgamento por não ser um homem "forte" o suficiente.

Recentemente tive muita dificuldade na gravação de uma série de TV em que a cena exigia habilidades físicas. Meu personagem tinha que cair de joelhos no asfalto e, depois de muitas repetições e com meus joelhos sangrando, eu não aguentava mais. E então fui repreendido na frente de todos e humilhado por quem deveria me dar suporte. Senti o peso do julgamento por não ser um homem "forte" o suficiente. Depois deste episódio, até o final das gravações, tive que suportar o desdém de toda a equipe, formada majoritariamente por homens cisgêneros.

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8. Não conseguiram conter os risos e as piadas de mau gosto quando eu apareci de mãos dadas com um namorado.

Por muito tempo as pessoas tiveram uma visão deturpada da transexualidade, confundindo identidade de gênero com orientação sexual. É importante lembrar ainda hoje que identidade é a forma como nos autodenominamos, e orientação sexual diz respeito ao nosso desejo. Algumas pessoas que se diziam "cabeça aberta" ficaram chocadas com o fato de eu me sentir atraído por homens e não conseguiram conter os risos e as piadas de mau gosto quando apareci de mãos dadas com um namorado.

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9. Somente há pouco tempo superei o trauma da saia e decidi vestir uma para um ensaio fotográfico.

Eu vivi em paz com minha identidade de gênero até os 7 anos de idade, porque morava no interior e a minha família entendia meu comportamento visto como "masculino". Até mesmo meus amiguinhos de infância me chamavam de Zezinho. Foi só quando tive que ir à escola que o pesadelo começou. Pense num garoto tendo que colocar a saia do uniforme feminino, em plena década de 60.

Com o tempo, perdi todos os colegas e vivi o resto da minha infância enfurnado dentro de casa. Fiz dos livros meus amigos e sobrevivi à transfobia prematura. Não abandonei os estudos como muitas pessoas trans acabam tendo que fazer e consegui chegar à universidade. Somente há pouco tempo, na vida adulta, superei o trauma da primeira saia e decidi vestir uma para um ensaio fotográfico. E foi libertador, pois homens podem usar saia, sim!

10. Eu tive que ficar em cima de um salto alto e aquilo desafiava o que as pessoas chamam de "masculinidade frágil".

Um dos grandes desafios que encarei na minha carreira artística foi viver um homem que era professor de teatro durante o dia e à noite encarnava uma drag queen. Eu tive que ficar em cima de um salto alto e aquilo desafiava o que as pessoas chamam de "masculinidade frágil". Mas foi bem mais fácil do que eu imaginava, já que sou um cara pequeno e delicado. Muitas pessoas que estavam trabalhando comigo cometiam atos falhos, me chamando no feminino mesmo quando eu não estava no personagem. Na cabeça delas, era fácil pra mim incorporar um personagem feminino por causa de uma suposta "essência feminina" que eles julgavam estar na origem da minha existência. A verdade é que foi um desafio pra mim, como seria para qualquer homem. Há muita informação a ser irradiada pra que esses enganos deixem de gerar situações de transfobia.

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