Carta para minha amiga lésbica

"Quanto tempo existimos sem ter poder sobre as nossas palavras? Quanto tempo levou pra poder dizer com gosto: lésbica?"

Minha amiga,

Eu já te contei a história da primeira mulher lésbica que conheci? Lembrei disso assistindo “Go Fish” (aliás, obrigada pela recomendação!), naquela cena em que elas ficam tentando adivinhar quem é das nossas sem se importar se é ou não verdade, porque o que vale é a especulação.

Eu inventei a primeira sapatão que conheci, ou adivinhei. Nunca vou saber ao certo. Foi em um verão que minha família passou as férias em Rio das Ostras. Todos os dias íamos para a praia ouvindo “A Fábrica do Poema”, da Adriana Calcanhoto, e parávamos no quiosque da Raquel (a sapatão inventada). Ela tinha também um irmão, o Zé, e meus pais se tornaram amigos deles. O Zé, eu sabia, era gay. Não lembro se a palavra existia, mas era um fato. A Raquel eu precisei adivinhar. Não sabia como chamá-la, mas podia reconhecer algo nela. Ela era diferente da maioria das mulheres que conhecia. Era como a Adriana Calcanhotto e a Marina Lima. Ninguém me dizia o que elas eram, mas não dizer é também uma forma de marcar a diferença. Quanto tempo existimos sem ter poder sobre as nossas palavras? Quanto tempo levou pra poder dizer com gosto “lésbica”, “sapatão”, fancha”, “cola-velcro”, “sáfica”?

Quando penso na Raquel, lembro de mim, aos cinco anos usando óculos de lentes cor-de-rosa em formato de coração fascinada com essa novidade. Eu ainda não sabia o que significava o apagamento das nossas vidas. O silêncio, então, podia ser confundido com um mistério. E naquelas férias ir pra Rio das Ostras foi como descobrir um novo país. Um país onde eu poderia viver.

Anos depois, já adulta, perguntei para meu pai sobre a Raquel: ela era lésbica, né? A palavra ficou pairando no ar, pesada. Ele pareceu confuso, demorou um tempo pra me dizer: Não, ela era casada. Tive que completar o que ficou subentendido, casada com um homem. Fiquei desapontada. Mas me agarrei na confusão do meu pai, ele também parecia estar em dúvida. E a sua explicação não era a resposta para a minha pergunta. Nunca vou saber quem foi Raquel. Talvez a criança que fui precisou inventar essa mulher lésbica, como foi preciso durante toda a nossa vida inventar novas possibilidades.

Agora que carrego a marca do silenciamento que atravessa as existências lésbicas, suspeito que se descobrir sapatão é também uma forma de se inventar. Para nos tornarmos quem somos, com toda nossa potência, precisamos nos adivinhar, especular, reconhecer pistas e tatear outros caminhos.

Por isso não gosto da expressão “sair do armário”. Pra mim, nosso processo de aceitação e orgulho é mais como um despertar, um despertar sapatão.

Sinto que ter orgulho de ser uma mulher lésbica não é um gesto simples, uma ação súbita, é um processo contínuo. Despertar é inventar a cada dia palavras, imagens, desejos e formas de vidas que são nossas. E toda vez que estamos juntas, minha amiga, também inventamos um país, uma comunidade onde podemos amar e viver.

Te escrevo com saudades e vontade de continuar a nossa especulação.

Um beijo,
da sua amiga sapatão

A autora Taís Bravo:

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