Tá todo mundo falando de "lugar de fala", mas o que é isso?
O lugar de fala não se trata de calar ninguém, mas de abrir espaço para que diversas vozes sejam ouvidas e levadas a sério.
Nas últimas semanas, pipocou nas redes sociais o tema do "lugar de fala".
No entanto, não raro este conceito é mal entendido:
Reprodução / Via Twitter
Reprodução / Via Twitter
Partindo daí, é impossível não reconhecer que os discursos valorizados quase sempre vêm de pessoas brancas, principalmente homens.
Reprodução/O Globo / Via oglobo.globo.com
Na imagem acima, por exemplo, temos o time de colunistas do jornal “O Globo”, composto por 70 pessoas. Quantas são mulheres? Quantos são negros?
Tente fazer a mesma análise em outros espaços que você conhece: como eram os médicos que já te atenderam? Ou os chefes que você já teve? Ou os protagonistas das novelas que você já assistiu?
Não é que essas pessoas não sejam competentes, mas elas têm mais chances de serem ouvidas, lidas e vistas independentemente da qualidade de seus discursos.
Ao tentar entender por que isso acontece, vemos que toda essa desigualdade também é resultado de uma estrutura social que ajuda a perpetuá-la, inclusive por meio da legislação, como ocorreu por centenas de anos no Brasil contra a população negra.
Assim, o lugar de fala destaca as condições sociais em que foi produzido um ponto de vista e como ele está inserido em uma hierarquia de privilégios.
O lugar de fala desconstrói a ideia do ponto de vista universal (alguém que pode falar por todos e representar a todos) para mostrar que pessoas diferentes têm experiências de mundo diferentes. E uma não pode falar pela experiência da outra.
Por exemplo, se queremos responder à pergunta: Como é viver em São Paulo? , temos que levar em conta que a experiência urbana de, digamos, um engenheiro branco que ganha R$ 6 mil reais por mês é muito diferente da de uma empregada doméstica negra que ganha o salário mínimo (R$ 998), ainda que ambos vivam na cidade.
Além disso, a noção de lugar de fala expõe que decisões que afetam toda a população são muitas vezes tomadas privilegiando-se o ponto de vista de um pequeno grupo.
É justo, por exemplo, que o debate sobre a descriminalização do aborto ocorra em um ambiente dominado por homens e ignore as perspectivas de mulheres que já sofreram as complicações de um aborto clandestino?
Por isso, o lugar de fala, mais do que denunciar como alguns pontos de vista são historicamente mais valorizados do que outros, mostra como é essencial que exista diversidade nas esferas de poder para que decisões que impactam toda a sociedade sejam mais justas.
Ainda assim, existe confusão em torno deste conceito. O lugar de fala muitas vezes é confundido com o monopólio da compreensão e da legitimidade discursiva. Ou seja, como se só uma mulher pudesse entender e falar de feminismo ou só uma pessoa negra pudesse entender e falar de racismo.
O lugar de fala não se trata de calar, por exemplo, o homem branco, mas de abrir espaço para que vozes além do homem branco sejam ouvidas e levadas a sério e, mais do que isso, também estejam presentes nas esferas de poder.
A filósofa Djamila Ribeiro explica isso em seu livro "O Que é Lugar de Fala?" e já deu diversas entrevistas sobre o tema. Na 6ª edição fo Festival Literário de Iguapé, ela explicou:
Eu não sei o que é [estar no lugar do outro], mas posso refletir criticamente sobre aquilo, eu posso ler, escutar o que essas pessoas estão falando para entender essa realidade e, aí sim, me responsabilizar pela mudança dessa realidade.
A gente pode pensar sobre tudo, desde que a gente entenda que a gente é marcado por um lugar social, por uma raça, por um gênero, que ninguém é neutro, ninguém é universal. Como podemos pensar do nosso lugar maneiras de construir um projeto de solidariedade maior que dê conta de diminuir essas distâncias entre nós?
Ou seja, mais do que expressar nossas opiniões por mero exercício retórico, como podemos usar a força do nosso discurso – principalmente se estamos em uma posição privilegiada – contra a perpetuação da desigualdade?
Caso queira ler mais sobre o assunto, confira o livro de Djamila e estes artigos do Nexo e da revista Piauí.