Por que todo mundo está assistindo “O Gambito da Rainha”?

A nova minissérie da Netflix leva uma heroína ferida a um novo território.

Cena de Beth Harmon em O Gambito da Rainha.
Cena de Beth Harmon em O Gambito da Rainha.

Netflix

Anya Taylor-Joy como Beth Harmon em O Gambito da Rainha.

Na semana passada, no meio do pandemônio da eleição presidencial dos Estados Unidos, tuítes aleatórios e stories do Instagram elogiando "O Gambito da Rainha", da Netflix, começaram a dominar meus feeds. Enquanto o presidente dos Estados Unidos estava colocando em dúvida a fé no processo democrático as pessoas estavam tuitando sobre uma série sobre xadrez? Nossa, o que rolou?

É sempre interessante quando uma série de fato causa uma ruptura na guerra onde vale tudo pela atenção dos telespectadores, mas fazer isso em meio ao ciclo de notícias mais caótico da década é um feito impressionante.

Pelo visto, essa atenção foi merecida: "O Gambito da Rainha" é uma série tão eficaz e cativante que se destaca imediatamente como uma das produções mais atraentes do ano.

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Acompanhar séries nos últimos cinco anos me deixou tão treinado para antecipar o acontecimento de coisas ruins que fiquei feliz com a forma como "O Gambito da Rainha" se desenvolve e depois destrói meu medo previsível.

A minissérie de sete episódios segue a vida de Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), uma órfã que quer se tornar a maior jogadora de xadrez do mundo. E, como toda missão tem seus obstáculos, ela também tem problemas com álcool e drogas. A série é criada por Allan Scott e Scott Frank, sendo que esse último assume a direção. Frank também é o criador do faroeste "Godless", e seus créditos também incluem os filmes "Caçada Mortal" e "Logan". Ele é o primeiro a ter sucesso em uma longa fila de pessoas que tentaram trazer "O Gambito da Rainha" para as telas. A série é baseada em um romance de 1983 com o mesmo nome e, nas décadas seguintes desde sua publicação, Michael Apted foi escalado para dirigir uma adaptação para as telas. Em seguida, Bernardo Bertolucci assumiu o comando. Mais tarde, "O Gambito da Rainha" foi até mesmo escolhido para se tornar a estreia de Heath Ledger na direção de um filme, mas ele morreu alguns meses antes do início da produção.

É o seguinte: se de imediato "O Gambito da Rainha" parece familiar, não é por acaso. A série faz uso da força dos temas recorrentes de contar histórias enquanto segue a trajetória reconfortante da jornada da heroína. É a estrutura de conto de fadas que você conhece: aqui está o tema recorrente da história da origem da órfã; ali, o do mentor sábio. A série segue fielmente a regra dos três — Beth tem três treinadores que se aproximam dela, ela tem três mulheres que agem como mães e protetoras, e ela também enfrenta seu mais temível adversário três vezes.

Mas, embora a série seja familiar, ela também está ciente de que está desembarcando em um ambiente onde as expectativas do público são bastante moldadas pelo trauma, e ela se diverte com essas expectativas. O trauma é fundamental para este momento nas séries mais prestigiosas, seja em comédias, como "Fleabag", ou dramas, como "Chernobyl". Isso, é claro, não é um problema em si: explorar os modos como nosso passado doloroso nos molda é um trabalho pesado e significativo para a arte. É só que comecei a associar esse tipo de séries premiadas com uma profunda destruição. Eu assisto a séries de TV me preparando para o pior.

"O Gambito da Rainha" habilmente prepara as cenas para sugerir que elas vão para um lado antes de mudar para outro. As escadas assustadoras do porão não levam à morte. O olhar inquietante de um homem mais velho não termina em abuso sexual. Acompanhar séries nos últimos cinco anos me deixou tão treinado para antecipar o acontecimento de coisas ruins que fiquei feliz com a forma como "O Gambito da Rainha" se desenvolve e depois destrua meu medo previsível.

Isso não quer dizer que as cicatrizes não estejam lá — Beth passou por uma grande angústia, mas suas feridas não a definem. A dor não é diminuída, nem é destacada. Ela está lá em flashbacks e triunfos. Ela aparece em seus altos e baixos. Às vezes, está presente nas escolhas que ela faz, da mesma forma que está para você e para mim. Beth está ferida e ativa, às vezes ganhando e às vezes perdendo, mas nunca apenas destruída, nunca apenas uma órfã, nunca apenas lidando com o vício.

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Cena de O Gambito da Rainha.
Cena de O Gambito da Rainha.

Netflix

Um grande motivo para "O Gambito da Rainha" dar certo é que a série resolve a tensão roteirista-diretor — uma dinâmica que surge quando um criador coloca mais ênfase em uma parte do processo em detrimento de outra. Tem o roteirista que reúne todas as suas destrezas de direção para exibir as palavras que escreveu (como Aaron Sorkin). Tem o diretor que escreve bem, mas seu foco principal é mostrar seus truques de direção (como Darren Aronofsky). Não há nada de intrinsecamente errado em inclinar a balança a favor de um em relação ao outro, mas em "O Gambito da Rainha", Scott Frank deu uma aula magistral sobre harmonizar os dois.

Frank cria uma sensação gótica envolvente através da qual Beth se move, alternando entre cortes rápidos de palpitações cardíacas e tomadas prolongadas que fazem você se inclinar para mais perto da tela. As partidas de xadrez são filmadas maravilhosamente.

O elenco também é perfeito. Anya Taylor-Joy entrega mais uma atuação de calibre de estrela em ascensão (pergunta séria: "A Bruxa" foi lançado há cinco anos, então por quanto tempo Taylor-Joy deve ser considerada “em ascensão” antes de ela finalmente chegar ao patamar de estrela consolidada?). Sua arma principal está no silêncio: ela preenche o quadro e permite que seus olhares contem a história, com um efeito fascinante.

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Beth está ferida e ativa, às vezes ganhando e às vezes perdendo, mas nunca apenas destruída, nunca apenas uma órfã, nunca apenas lidando com o vício.

Marielle Heller, a atriz que virou diretora ("O Diário de uma Adolescente", "Um Lindo Dia na Vizinhança"), é extraordinária como Alma, a mãe adotiva de Beth. Aqui, também, "O Gambito da Rainha" subverte as expectativas: o relacionamento de Alma e Beth é menos de mãe e filha, mais de duas mercenárias que precisam uma da outra, e Heller é atraente nesse papel.

Então, tem a Jolene. Interpretada pela recém-chegada Moses Ingram, Jolene é uma órfã negra e a primeira amiga de Beth no orfanato. Ingram é sempre um show à parte, explodindo na tela com energia e carisma. Esse é o primeiro papel importante de Ingram desde que se formou na escola de teatro, mas, olhando para ela, você imagina que ela é uma veterana.

Juntas, Taylor-Joy e Ingram têm um genuíno afeto e química. Provavelmente, para mover a personagem para longe dos clichês, Jolene é autorizada a estabelecer limites, ganha um arco de personagem satisfatório e ações próprias.

"O Gambito da Rainha" é inteligente o suficiente para tratar seu público com respeito. Ninguém explica o que é a Defesa da Sicília, preferindo se concentrar em por que ela é importante na narrativa.

A série é ambiciosa, bonita e criativa. Pelo amor de Deus, ela encontra uma maneira de injetar apelo sexual no xadrez. Ela propõe um trauma que é suficiente para pertencer a este momento das séries e, ao mesmo tempo, escapar dele. Mais do que qualquer outra coisa, é uma viagem intensa que parece familiar o suficiente para ser convidativa. Não é à toa que ela está conseguindo ter sucesso, mesmo quando o mundo está uma bagunça. ●

Este post foi traduzido do inglês.

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