Por que "Os Crimes de Grindelwald" pisoteia o legado de Harry Potter

Com Os Crimes de Grindelwald, a franquia do Mundo Bruxo perdeu a noção do que significa criar uma boa história. Não é muito pedir que um filme tenha personagens cujas motivações façam sentido, ou que uma série que faz referências diretas aos seus filmes antecessores honre as histórias das quais está "tirando vantagem". [ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS]

Warner Bros.

Johnny Depp como Gellert Grindelwald em Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald.

Ver algo que você amava e respeitava se autodestruir é um triste espetáculo. É como entrar escondido no quarto de alguém durante um telefonema trágico ou encarar um cachorro enquanto ele faz cocô — você sente como se estivesse se intrometendo em algo confuso que não deveria ver. Foi essa minha sensação ao assistir a Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald, a segunda parte do spin-off de Harry Potter.

Os livros originais de Harry Potter foram bem escritos e traziam personagens cativantes, mas Os Crimes de Grindelwald acaba por destruir esse legado.

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Eamonn M. Mccormack / Getty Images

Depp na estreia britânica de Os Crimes de Grindelwald.

Os Crimes de Grindelwald foi controverso mesmo antes de o primeiro filme de Animais Fantásticos chegar aos cinemas.

A Warner Bros. anunciou que Johnny Depp interpretaria Gellert Grindelwald dois anos atrás. Muitos fãs ficaram indignados, já que a continuação de uma série que continha uma narrativa tão tocante no tema do abuso empregaria um homem cuja ex-mulher, Amber Heard, havia feito acusações de violência doméstica contra ele (mais tarde, ela desistiu do processo, e ela e Depp divulgaram uma declaração dizendo que "nenhuma das partes tinha feito falsas acusações por ganhos financeiros"; Depp mais tarde alegou que Heard também havia sido fisicamente violenta com ele).

Com o movimento #MeToo (Eu Também, em tradução livre), a pressão dos fãs para que a Warner Bros. dispensasse Depp se intensificou. Depois que a Warner Bros., a roteirista J.K. Rowling e o diretor David Yates declararam que ficariam ao lado do ator, vários fãs falaram com o BuzzFeed News sobre sua decepção e como estavam se sentindo traídos.

“Se Ridley Scott pode refazer um filme inteiro em duas semanas, eles podem trocar Johnny Depp”, disse a fã de Harry Potter Cate Young na época. Ela estava se referindo à demissão de Kevin Spacey do filme Todo o Dinheiro do Mundo depois das alegações de assédio sexual e conduta imprópria contra o ator e sua rápida substituição por Christopher Plummer.

No entanto, a Warner Bros. decidiu não substituir Depp, e assim o interminável debate em torno da separação entre arte e artista permaneceu uma parte inexorável da atmosfera em torno de Os Crimes de Grindelwald. Às vezes, essa polêmica pareceu até mesmo ameaçar a campanha inteira de marketing do filme.

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Depp dificilmente é o único problema em Os Crimes de Grindelwald. Mesmo quando ele aparece – como uma vela derretida ou um pedaço de pão branco mofado – a própria crise de identidade do filme o engole.

No entanto, Depp dificilmente é o único problema em Os Crimes de Grindelwald. Mesmo quando ele aparece – como uma vela derretida ou um pedaço de pão branco mofado – a própria crise de identidade do filme o engole. A presença de Depp é basicamente uma mosca zunindo ao redor das cabeças dos espectadores durante um momento já ruim.

Os Crimes de Grindelwald recomeça onde Animais Fantásticos parou e segue o desajeitado Newt Scamander (Eddie Redmayne) sob as ordens de um jovem Alvo Dumbledore (Jude Law) para encontrar um jovem perdido e que foi torturado chamado Credence (Ezra Miller) antes de ele cair nas mãos do vilão Grindelwald.

Um grande grupo de outros personagens também é levado no passeio sombrio de Newt, mas todos se perdem na infindável confusão do enredo. O filme mal parece capaz de compreender todos os seus personagens e o que os motiva.

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Warner Bros.

Teseu (Callum Turner), Leta (Zoë Kravitz) e Newt (Eddie Redmayne) estão em um triângulo amoroso em Os Crimes de Grindelwald.

A mulher-cobra Nagini (Claudia Kim), que segue Credence, não parece ter nenhuma motivação além de cuidar dele. Tina Goldstein (Katherine Watson), uma das protagonistas do primeiro filme de Animais Fantásticos, é misteriosamente relegada a um interesse amoroso. O trouxa Jacob Kowalski (Dan Fogler), um dos destaques do primeiro filme, é usado só para alívio cômico. A mais interessante dos personagens de Os Crimes de Grindelwald é Leta Lestrange (Zoë Kravitz), cuja turbulência interior é explorada, embora através de uma sequência maluca que pode ou não envolver Titanic (longa história!). Infelizmente, as motivações dela em seu relacionamento com Newt e seu irmão Teseu (Callum Turner) são completamente inexplicáveis, e o filme mata a personagem quando ela está prestes a ficar interessante.

No entanto, ninguém no filme é apresentado de forma tão confusa quanto Queenie Goldstein (Alison Sudol), a telepata que de alguma forma se transforma de charmosa heroína de Animais Fantásticos na mais nova vilã de Os Crimes de Grindelwald, tudo porque — hã??? — ela quer se casar com Jacob e Grindelwald está pregando o amor livre.

A determinação de Os Crimes de Grindelwald em destruir seu próprio contexto narrativo é impressionante. No primeiro filme de Animais Fantásticos, Queenie era animada, corajosa e gentil; aqui ela é tímida e cruel, lançando feitiços de amor como se eles não fossem uma grande violação de consentimento. O primeiro ato de Os Crimes de Grindelwald dedica vários minutos a simplesmente se afastar do final de Animais Fantásticos, restaurando as memórias apagadas de Jacob com algumas linhas de diálogo, e não fornece nenhuma explicação para a sobrevivência de Credence depois que o primeiro filme fez todo um estardalhaço na cena de sua morte.

Esses artifícios de enredo são apenas uma amostra do que está por vir. As decisões mais absurdas do filme estão nos momentos em que ele tenta explicitamente agradar aos fãs. Agradar fãs de franquias pode ser divertido! O antigo alquimista Nicolau Flamel (Brontis Jodorowsky), por exemplo, é apresentado no filme, e essa é uma ótima escolha: uma prequela de Harry Potter obviamente abre portas para brincar com personagens mencionados, mas nunca vistos, na série original. Há uma emoção singela nas piadas sobre a idade de Flamel em Os Crimes de Grindelwald, e em uma breve foto da Pedra Filosofal que deu o título ao primeiro livro de Harry Potter. No entanto, é com a participação especial de uma mulher identificada como "McGonagall" (Fiona Glascott) que o filme faz uma de suas mais notórias forçações de barra.

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As decisões mais absurdas do filme estão nos momentos em que ele tenta explicitamente agradar aos fãs. 

McGonagall aparece como professora de Hogwarts em meados da década de 1920, o que parece ser uma mensagem inocente o suficiente para uma personagem reverenciada, até que você para para pensar. Há muito tempo os fãs estimam que a data de nascimento de McGonagall esteja em algum lugar entre 1925 e 1937. Em uma entrevista publicada no site da Scholastic em 2000, Rowling disse que Dumbledore tinha 150 anos, enquanto McGonagall tinha "vívidos 70". O Pottermore mais tarde listou o ano de nascimento de Dumbledore como sendo 1881, tornando-o cerca de 30 anos mais jovem do que o indicado anteriormente, mas mais adequado para a faixa etária de Jude Law em Os Crimes de Grindelwald. No entanto, mesmo dando ou tirando alguns anos, e levando em conta os irregulares hábitos de envelhecimento dos bruxos, a diferença de idade entre os personagens faz com que seja um pouco exagerado o fato de McGonagall estar correndo por aí como uma mulher adulta nos anos 1920. É improvável que a "McGonagall" apresentada no filme possa ser sua mãe também; o perfil no Pottermore da personagem entra em detalhes sobre seus pais, mas não inclui nenhuma menção a Isobel McGonagall ter lecionado em Hogwarts.

Querer dar aos fãs a alegria de ver uma jovem Minerva McGonagall na tela é compreensível — mas tornar sua linha do tempo confusa com uma participação especial aleatória não. Parte do que tem mantido a série Harry Potter na mente das pessoas ao longo dos anos é que elas podem sempre reler a série e descobrir intrincados prenúncios e histórias sobrepostas cuidadosamente escritas em todos os livros, do primeiro ao último. Muitas outras séries infantis de fantasia desapareceram da imaginação do público; Harry Potter tem resistido em parte porque o trabalho de enredo e dos personagens na série original é amplamente respeitado.

Esse alto apreço torna ainda mais notável como Os Crimes de Grindelwald pisoteia todo o legado de Harry Potter. Os Crimes de Grindelwald pratica a autodestruição sob o disfarce de dar aos fãs o que eles querem.

A reviravolta final em Os Crimes de Grindelwald vem por meio de Credence – revela-se que ele é o irmão de Alvo Dumbledore há muito tempo perdido e não mencionado anteriormente. Isso traz à tona vários enigmas para a narrativa, embora, ao contrário da participação especial de McGonagall, pelo menos existam indicações que um dos próximos três filmes de Animais Fantásticos tentará trazer respostas (ai meu Deus, sim, ainda faltam mais três desses filmes).

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Warner Bros.

Nagini (Claudia Kim) confortando Credence (Ezra Miller).

Mesmo que Os Crimes de Grindelwald possa servir apenas como ponte para grandes batalhas à medida que a série entra na Segunda Guerra Mundial, o fato de ela já ter perdido completamente o controle de seus personagens e da história não é um bom sinal.

Afinal, Os Crimes de Grindelwald transforma Queenie, anteriormente uma boa pessoa, no que essencialmente equivale à versão bruxa de um nazista. Por que o público engoliria a transformação de Queenie para o lado sombrio simplesmente porque ela quer casar? Devemos esquecer que ela é uma telepata e que deveria ser capaz de dizer que Grindelwald — a quem jurou fidelidade — é um nacionalista assassino e perverso?

O monólogo culminante de Grindelwald é igualmente confuso: ele prega aos seus seguidores que eles devem oprimir os não bruxos porque a Segunda Guerra Mundial está iminente e ameaça destruir a todos. É um círculo vicioso — ele aparentemente quer cercar e matar os trouxas porque eles estão cercando e matando uns aos outros. Não está claro se Grindelwald quer pôr um fim à guerra ou apenas tirar vantagem dela.

A série original de Harry Potter era conhecida por sua alegoria política ao ponto em que, em 2017, muitas pessoas usaram a série como referência à administração de Donald Trump nos EUA.

Os
Crimes de Grindelwald, por sua vez, não parece ter uma compreensão clara da lógica de seu próprio vilão. Se o filme realmente sabe do que Grindelwald está falando, não sabe como apresentar sua linha de raciocínio de um jeito que faça sentido. Essa falta de compreensão escapa a todos os personagens, até mesmo aos heróis. Que um filme do Mundo Bruxo em 2018 seja tão confuso sobre os pontos ideológicos básicos em seu núcleo é tragicamente significativo.

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Jaap Buitendijk / Warner Bros.

Grindelwald e a capanga Rosier (Poppy Corby-Tuech).

Os problemas em Os Crimes de Grindelwald por si só são muitos, mas não podemos esquecer do homem que ameaçou derrubar toda a empreitada. Depp também não está bem. Se este filme é um desastre, Depp contribuiu do seu jeito.

Os Crimes de Grindelwald é uma continuação do compromisso de 15 anos de Depp com papéis que o cobrem de maquiagem e figurinos espalhafatosos para que ele possa se safar fazendo pouco mais do que andar pomposamente por aí com uma voz caricatural.

Tudo o que Depp faz em Os Crimes de Grindelwald teria sido 50 vezes melhor se fosse interpretado por outra pessoa, e havia muitas oportunidades dentro da narrativa para isso. Há uma longa sequência perto do início do filme em que Grindelwald troca de rosto (e língua?) com outros personagens. Havia abertura para que ele ficasse com um desses outros rostos e acabasse com nosso sofrimento — ou pelo menos parte dele.

Os Crimes de Grindelwald não seria salvo tirando Depp do elenco, mas isso poderia ter tornado o filme um pouco mais tolerável. Fãs casuais podem achar o filme totalmente aceitável e podem ficar empolgados com a perspectiva de explorar o passado de um novo membro da família Dumbledore. Alguns provavelmente não verão nenhum problema em comemorar uma participação especial da icônica McGonagall, embora ela pareça ter se afastado de sua própria linha do tempo. No entanto, para muitos fãs de longa data, Os Crimes de Grindelwald atua como a expressão de alerta do canário de uma mina de carvão: duro, mórbido e como sinal de morte, alertando os telespectadores de um problema maior e mais profundo.

Com Os Crimes de Grindelwald, a franquia do Mundo Bruxo perdeu a noção do que significa criar uma boa história. Não parece muito pedir que um filme tenha personagens cujas motivações façam sentido, ou que uma série que faz referências diretas aos seus filmes antecessores honre as histórias das quais está "tirando vantagem".

A série Harry Potter é um legado forte e digno de spin-offs, mas Os Crimes de Grindelwald explode essa base. Isso levanta a pergunta: se essa história está tão determinada a se autodestruir, então para que fazê-la?

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A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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